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15:03h

    Laila acordou desnorteada e confusa. Tudo ao seu redor parecia errado. Ela estava jogada no asfalto, completamente suja e machucada. Tentou gritar por ajuda, mas não havia ninguém por perto. Levantou sem dificuldade e percebeu que por algum motivo seus ferimentos não doíam. Nada daquilo fazia sentido. O sangue parecia ter estancado antes mesmo de sair de seus vasos, de modo que haviam feridas abertas profundas que não latejavam e nem sangravam. A sujeira de seu corpo parecia ter se unido a sua pele, denunciando dias - talvez semanas - sem limpeza.
Começou a andar pela rua em que acordara em busca de alguém que pudesse explicá-la o que estava acontecendo. Não obteve sucesso. Por mais que andasse, todas as esquinas pareciam iguais. Todas as ruas eram a mesma rua. Até o padrão de organização das nuvens parecia repetido. Laila teve a sensação de estar presa em um quadrado - e estava.
Quando finalmente percebeu que andar era inútil, resolveu sentar e pensar. Sua mente produzia uma pergunta atrás da outra. Como havia se machucado? Onde estava? Onde estavam todas as pessoas?
Laila estava tão imersa em si que não notou que existia outra pessoa com ela naquele lugar. No fim da rua, pouco antes da esquina contínua, um garoto dormia preguiçosamente no chão. Era Theo.
Theo e Laila ficaram amigos aos seis anos de idade, quando se mudaram para o mesmo prédio e se tornaram vizinhos. Os dois cresceram juntos como irmãos inseparáveis até que Laila e sua família foram morar em outra cidade. Não perderam o contato, mas desde então só se encontravam duas vezes por ano, no aniversário de cada um.
Theo despertou alguns minutos depois de Laila e estava tão desgrenhado quanto ela. A lente de seu óculos havia se partido e estava caída a poucos metros dele. O mundo estava embaçado. Tentou olhar as horas em seu relógio de pulso: 15:03h. Sentou no chão e buscou enxergar em volta. Não lembrava o quão difícil era viver sem óculos. Em um instante sua tentativa falha de observação foi interrompida por uma melodia familiar. Reconheceu rapidamente o solo de guitarra de Sweet Child O'Mine, do Guns N' Roses. Era sua música favorita. A origem do som parecia ao mesmo tempo próxima e distante. Era quase como se a canção viesse de dentro de sua cabeça.
Ouviu pacientemente até o fim, e então a música começou a se repetir. As notas e versos entraram em um looping eterno. Por mais que tentasse, Theo não conseguia identificar a direção do som para seguí-lo. Angustiado com a situação, gritou um desesperado "quem está aí?". Sua visão embaraçada não o permitiu enxergar ninguém, portanto não esperava resposta - mas teve. Em questão de segundos, Laila estava em seus braços chorando ruidosamente e analisando seus ferimentos. Uniram-se em um longo abraço e durante esse tempo estiveram mudos. Só se ouviam os soluços de Laila e o refrão enfadonho da música que ecoava.
Enquanto a moça choramingava em seus ombros, Theo olhou novamente seu relógio. Os ponteiros ainda marcavam 15:03h, apesar de terem se passado vários minutos. O ponteiro dos segundos girava incansavelmente, mas os outros não se mexiam. Imaginou que o aparelho estivesse quebrado e ignorou a situação. Sozinhos e presos em um lugar aparentemente espelhado, um relógio com defeito era o menor de seus problemas.
Começaram a discutir sobre a condição em que se encontravam. Laila acreditava que ela e seu amigo eram os únicos sobreviventes de algum tipo de apocalipse. Theo não via sentido nessa teoria, mas não conseguia formular uma tese menos absurda.
Laila deitou no chão e ficou olhando para o céu. As nuvens pareciam diferentes agora. Havia uma fumaça cinzenta se camuflando com as nuvens mais escuras. Aquilo sempre esteve ali?
Acompanhou o caminho da poeira com os olhos até o local exato onde a fumaça se originava. Não era muito longe de onde eles estavam. Mostrou a Theo, mas ele não via nada além de manchas.
Não sabiam o que fazer, então resolveram ir até a origem para descobrir o que queimava. 
A fumaça vinha de um carro batido. Laila tentou olhar dentro do carro em busca de algo que os ajudasse. A única coisa que estava em seu campo de visão era o aparelho de som do carro.
"Estavam ouvindo Sweet Child...". Laila não conseguiu terminar a frase.
Nesse exato momento, os dois amigos recuperaram as últimas memórias.
Era dia quinze de julho, aniversário de Theo. Estavam indo juntos para a praia. A música favorita de Theo tocava no volume máximo. Laila cantava distraída enquanto dirigia. Com um descuido, ela perdeu o controle do carro. Bateram em um muro e tiveram os corpos arremessados a vários metros de distância do veículo. Morreram no mesmo exato minuto.
Eram 15:03h.

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