O vilarejo onde cresci sempre foi
extremamente calmo. Passei minha vida inteira em um povoado isolado na ilha de
Hiiumaa, na costa oriental do mar Báltico. Sempre foi uma vivência um tanto
pequena, mas, apesar do tédio, nunca tive do que reclamar.
Eu e minha família éramos em cinco. Eu,
minha mãe, minha avó e minhas duas irmãs habitávamos uma espécie de choupana de
uns poucos metros quadrados. Não haviam figuras masculinas em nossa vivenda.
Meu avô morreu antes de meu nascimento e meu pai, um estrangeiro que caiu em
Hiiumaa por azar do destino, fugiu da ilha na primeira oportunidade que teve.
Não o culpo por isso. A inércia do vilarejo é capaz de desvairar até as mentes
mais sãs.
A aldeota era sustentada por pesca e
artesanato. Vendíamos nossos peixes para toda a Estônia e nossas habilidades
artísticas eram vastamente reconhecidas. Apesar de aparentar nunca evoluir, a
vila prosperava. Como minhas opções se restringiam basicamente a ser artesã ou
pescadora (e essa tarefa era mais reservada aos homens), comecei a construir
bonecas de areia para minha mãe vender no mercado. Era um passatempo divertido.
No início da confecção eu fabricava as
bonecas apenas para ganhar alguns trocados e comprar doces, mas com o tempo
comecei a criar afeto pelas criaturinhas. Modéstia à parte, as bonecas eram
lindas. Eu seguia um passo-a-passo rigoroso para fazer cada uma delas. Primeiro
costurava a estrutura dos corpinhos com os retalhos que sobravam das obras da
minha avó. Cosia também alguns vestidos coloridos e brilhantes para vestí-las
quando estivessem prontas. Depois ia à praia e preenchia as carcaças com areia
fofa para que minhas filhas tomassem forma - essa sempre foi minha parte
favorita. Por serem feitas de areia, elas sempre tinham um cheiro de mar
característico. E assim, após algumas horas de linha, agulha, retalhos e areia,
surgia uma boneca nova. Eu aplicava tanto amor na composição das bonecas que a
cada conclusão a sensação era de que uma nova entidade houvesse sido adicionada
à minha alma.
Agora que você já conhece minha
história, posso finalmente contar o que aconteceu. Acredite se quiser.
Como eu já disse, nada de
extraordinário acontecia em Hiiumaa. A vida lá sempre foi tão pacata que
beirava à monotonia. E o que eu podia querer de ilógico em um lugar desses?
Enfim, era dia dezessete do quarto mês.
Os pescadores haviam saído cedo para alto mar em busca de um peixe que só
aparecia naquela época do ano. As artesãs cuidavam de suas oficinas. Tudo
seguia como costume.
Peguei alguns tecidos que minha avó abandonou
e retomei minha rotineira fabricação de bonecas. Segui meu esquema usual -
sempre fui muito metódica. Costurei o corpo e o vestido com dedicação, e quando
prontos fui à praia buscar areia para o recheio. Gostava de usar a areia que
ficava à beira do farol abandonado da ilha, porque ela era mais densa e deixava
as bonecas mais firmes. Terminado o trabalho, fiquei admirando minha criação.
Aquela era uma das bonecas mais bonitas que já fizera. Batizei-a de Sirena, em
homenagem às estórias de sereias que minha avó me contava quando pequena.
Sirena tinha os cabelos verdes com algumas conchas penduradas e trajava um
vestido branco fino. Os olhos eram duas pedrinhas pretas que encontrei no
caminho para o farol. Achei que ela parecia um pouco comigo.
Depois de encarar Sirena por alguns
minutos, decidi que ela precisava de mais conchas no cabelo. Saí então em busca
de alguns búzios para completar o penteado. Quando estava no meio de minha
caçada, ouvi minhas irmãs gritando meu nome desesperadamente. Corri até elas
sem pensar duas vezes. Quando nos encontramos, elas me disseram que o alarme de
tempestade havia soado e toda a população fora instruída a ficar reclusa em
suas casas. Ajudamos minha avó e minha mãe a guardar os materiais da oficina e,
como todo o resto de Hiiumaa, nos trancamos.
Naquela noite choveu como nunca. Os
relâmpagos desenhavam o céu enquanto os trovões nos ensurdeciam. Nossa choupana
vazava por todos os cantos. Não estávamos preparadas para uma chuva daquela
proporção.
Os ventos estavam extremamente velozes,
o que fez a transmissão de rádio ser cortada. Sem o rádio, ficar presa em casa
era ainda mais entediante. Como não havia o que fazer, nos recolhemos logo
depois do jantar. Coloquei minhas irmãs na cama e fui me arrumar para dormir.
Quando cheguei no quarto e vi minha
família de bonecas na estante, lembrei de minha nova companheira que havia sido
esquecida no farol. Sirena, tão linda, a essa altura já devia ter voltado a ser
areia. Lamentei a perda e resolvi que no dia seguinte iria procurá-la. Não
me julgue por ter esperança, eu só queria minha boneca de volta.
O dia seguinte amanheceu cinzento.
Algumas casas foram derrubadas com o
vendaval e um barco foi perdido. Felizmente, ninguém se machucou.
Enquanto a vila se reorganizava para
voltar ao cotidiano, fui correndo até o farol para procurar vestígios de
Sirena. Queria encontrar os materiais que usei para fazê-la para tentar
reconstruí-la. Procurei por mais de vinte minutos mas não encontrei uma
pedrinha sequer que um dia fora a boneca. Decepcionada, comecei minha caminhada
de volta para casa. Ou ao menos tentei começar.
No momento em que virei as costas para
o farol, ouvi uma risada.
A gargalhada foi alta e reverberou de um jeito estranho. Parecia ter
sido emitida do topo do farol, mas isso era impossível. O farol estava fechado
há décadas, e todas as entradas foram bloqueadas com cimento.
Achei que minha mente estava me
pregando peças e voltei a dar as costas ao farol. Mais uma vez, assim que
virei, ouvi o riso. Todos os pelos do meu corpo se arrepiaram. Pareceu
mais histérico da segunda vez, como se buscasse minha atenção.
Olhei para o topo do farol em busca da
dona da voz, e até hoje prefiro acreditar que meus olhos se enganaram naquela
visão.
Como você já deve imaginar, era
ela.
Sirena estava lá em cima, e a areia e
pano agora pareciam carne e osso. O rosto dela era simplesmente aterrorizante.
O que eram duas pedrinhas brilhantes viraram dois olhos completamente negros. A
palidez de sua pele denunciava sua natureza não-humana. Os cabelos tinham um
tom verde-pântano e estavam enlameados. O olhar era vazio.
Chamei seu nome, não consegui evitar.
Era virou o pescoço para mim com movimentos mecânicos e sorriu. Ah, aquele
sorriso. Nunca existirá algo tão perturbador quanto aquele sorriso. Estava tudo
errado.
O sorriso imóvel de Sirena foi logo
interrompido por mais uma risada. Não sei descrever o quão perverso era aquele
som. Entrava em minha cabeça e ressonava lá dentro sem cessar. Eu me tornei
puro pânico.
Em desespero, comecei a correr para
longe do farol. A imagem da boneca, agora uma moça, fazia minha mente querer se
partir em duas. Como era possível que uma estrutura de areia tivesse
criado vida própria? E porque uma aparência tão medonha?
Eu nunca soube responder isso.
Depois daquele dia, não retornei mais
ao farol. Também não construí mais nenhuma boneca. Tentei contar o ocorrido à
minha família, mas todas acharam que era mais uma de minhas fantasias infantis.
Eu nunca esqueci aquele rosto e muito
menos o som do riso. Sinto calafrios no corpo toda vez que sinto um cheiro
forte de mar. A imagem de Sirena ficou impregnada em mim de tal forma que
é como se ela estivesse sempre por perto.
Ninguém nunca acreditou em mim, mas até
hoje escuto relatos de pessoas descrevendo uma menina de cabelos verdes presa
no farol de Hiiumaa. Sirena virou uma lenda, mas tragicamente eu sei que ela é
real.

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