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Jasmim.

Era algum dia entre dez e quinze de setembro e o entardecer caía calmo sob a copa das árvores. O dia estava extremamente silencioso e só o que se ouvia era o canto aflito de um sabiá aprendendo a voar. Sempre gostei de passar minhas tardes de primavera admirando o desabrochar das flores e sentindo o vento em meu cabelo. 
Como que intencionalmente, uma abelha grudou em meus cachos, atrapalhando minha paz. Está aí a pior parte da natureza: insetos. Passei as mãos desajeitadas entre os fios enquanto me esforçava em vão para não entrar em pânico. 
Fui vencida em minha luta. O local da ferroada latejava e eu só pensava no quanto queria que todas as abelhas do mundo sumissem. Instigada pela vingança, persegui a maldita abelha e a esmaguei entre meus dedos. Quem é a esperta agora, hein?, pensei alto. 
Voltei ao lugar onde estava sentada e me atentei a terminar minha leitura. Eu estava tentando concluir meu exemplar de O Retrato de Dorian Gray há meses, mas faltava paciência. Wilde estaria decepcionado.
Quando finalmente estava determinada a ler, uma voz tímida me interrompeu. É bom que seja por um bom motivo.


"Você sabia que são as abelhas que garantem a diversidade e o equilíbrio do ecossistema?"

Foi a primeira vez que ouvi a voz dela. Admirei seus traços e encarei os olhos. Eles eram castanhos - há quem veja beleza em olhos castanhos. O cabelo dela lembrava o meu próprio. As ondas escuras e volumosas contornavam o rosto de forma leve. Ela era lindíssima, e estava com raiva. Algo naquele rosto não era compatível com raiva. Parecia contraditório.
Disse meu nome e pedi perdão à ela e ao ecossistema por ter matado aquele inseto. No fundo, tinha vontade de matar todas as abelhas que aparecessem em minha frente, mas fiz a desculpa soar convincente. Ganhei um sorriso em troca. Valeu a pena a mentirinha.
Perguntei seu nome mas fui interrompida com mais comentários sobre ecologia. Ela estava no quinto semestre de Ciências Biológicas e era claramente uma amante da natureza. As observações que fazia eram inteligentes, mas eu estava achando tudo aquilo muito engraçadinho. Ela era uma tagarela irritante, mas, ao mesmo tempo, fofa. Uma daquelas pessoas que dá vontade de enforcar por ser gracinha demais. Ela era a gracinha em forma de gente.
Estou repetindo o pronome ela diversas vezes porque eu nunca soube seu nome. Preferi fazer disso um mistério. Costumava chamá-la de Jasmin, em homenagem à flor que simboliza amor, graça, timidez e alegria.

Jasmin era um jasmin, e eu queria ter uma plantação inteira no meu jardim.
Claramente eu sou péssima com rimas. Isso não vem ao caso.

Naquela tarde de setembro, Jasmin ganhou uma amiga. Nos encontrávamos praticamente todos os dias e eu passava horas e horas ouvindo-a falar sobre o mundo mágico da Biologia. Nunca me interessei por essa área do conhecimento, mas vindo dela qualquer coisa se tornava interessante. 
Foi bem ali, naquela tal tarde de setembro, que as coisas começaram a dar errado. E tudo porque Jasmin ganhou uma amiga, mas eu ganhei um amor - um eros. Quando percebi o equívoco, era tarde demais.
Nossa amizade continuou a prosperar, sem nenhuma das mentes ingênuas se dar conta do mal-entendido. Eis que chegou dia vinte de dezembro. Nesse dia haveria o lançamento de um filme que ela queria muito assistir, e Jasmin me convidou para acompanhá-la. Não consegui interpretar aquele convite de nenhuma forma diferente: para mim, minha amada finalmente criara coragem para me chamar para sair e eu não podia estar mais feliz. 
Primeiro nos encontramos na casa dela e ela me mostrou uma coleção de livros do Richard Dawkins. Falava com orgulho de cada aquisição, mas meus pensamentos não conseguiam focar em nada que não fosse um grande e nervoso "é agora". E não era.
Em um movimento suave, toquei o pescoço de Jasmin e puxei-a para um beijo. Senti toda a sua musculatura enrijecer sob minhas mãos. Foi esse o momento que percebi meu erro. E como disse, era tarde demais.
Jasmin me encarou com um olhar de fúria e eu sentia que tinha acabado de esmagar uma colmeia inteira em sua frente. 

Não imaginava que você fosse uma dessas garotas, berrou.
Como você pôde tocar em mim desse jeito?
Eu nunca mais quero te ver.
Você é nojenta.

Foi a última vez que ouvi a voz dela.
E meu jasmin virou um belo narciso.
Não tão belo assim.

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