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Brisa.

Não aconteceu nada de particular naquele dia. Acordei atrasada para a faculdade e corri até o ponto de ônibus ainda com um copo de café nas mãos. Sentei, arrumei meus cachos desgrenhados e coloquei um batom discreto enquanto esperava. Não demorou muito. 
Cheguei na faculdade e decidi não entrar na primeira aula. O dia estava bonito demais para me trancar em uma sala com ar-condicionado e eu já estava atrasada de qualquer jeito. Joguei minhas coisas em um canto e fui conversar com o jardineiro. Ele sempre tinha alguma reclamação a fazer e eu gostava de ver o quanto ele se importava com as flores. Sempre gostei muito de flores.
Não consigo lembrar quais aulas tive. Minha memória está cada vez menos específica e já não me recordo de alguns dados importantes. Talvez esse relato não passe de uma invenção da minha cabeça. Nunca saberemos.
Passei a manhã na faculdade. No fim das aulas, peguei o primeiro ônibus. Acho que estava indo para casa. Lembro-me de transitar pela orla e sentir o salitre grudar em minha pele. O cheiro do mar é o único a não se perder em minha mente.
Desci em algum lugar. Talvez tenha andado um pouco.
A única certeza depois disso é de ter visto muitos prédios. 
Muitos prédios e então muitas pessoas. 
Pessoas gritando ao meu redor. 
E então o céu. 
E dormi.

Acordei com muitas dores e com uma angústia inexplicável. Não houve outra reação além do choro. Não conseguia abrir meus olhos e por um tempo pensei ter ficado cega. Tentei me mexer, mas meu corpo não respondia exatamente os comandos. Todas as tentativas fracassaram em movimentos descoordenados.
O desespero me fez demorar a enxergar, mas o fiz. Tudo estava claro e frio demais. Eu estava em um quarto de hospital. Esforcei-me para olhar, mas meu corpo pesava. Foi um custo quase insuportável virar a cabeça. 
Vi muitos fios, e um vidro. Um vidro grande me envolvia. Parecia estar presa em uma redoma. Nada fazia sentido. Os prédios? As pessoas? E então uma redoma? Comecei a achar que estava tendo um pesadelo. Nenhuma realidade se encaixaria com coerência em todas aquelas informações.
Foi então que vi uma de minhas mãos. 
E todos os meus sentidos explodiram em pavor.
Era uma mão pequena. Muito pequena. E singela. Não era minha, mas eu a controlava. Estava colada em meu corpo a mão de um recém-nascido. Eu a sentia e a impossibilidade daquilo que estava em minha frente era excruciante. Todo o meu ser se estremeceu e rebentei em choros e gritos incompreensíveis. 
Ouvir meu próprio choro me fez entrar em agonia. A minha voz se calou. A pronúncia confundiu os formatos. Todo o meu vocabulário se esvaiu - e eu entendi.
Entendi que não era mais eu e, ao mesmo tempo, era de novo.
Talvez já tenha passado por isso um zilhão de vezes.
E passarei muitas outras sendo tomada pela mesma dor.
Porque tudo se apaga
e então acende de novo.
E nunca lembrarei.

Não sei por quanto tempo ainda manterei minha consciência.
Mas sei que o cheiro de mar se impregnou em minha alma 
e ele é agora - e sempre foi - a minha única identidade.

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