Era uma tarde ensolarada de março. Lira estava trancada em seu
quarto. Não havia uma alma viva disposta a conversar com ela. Nenhum de seus
conhecidos era capaz de reservar cinco minutos de seu dia para trocar algumas
mensagens. Cantava, porque o som da própria voz era menos solitário do que o
silêncio.
Nunca fora uma exímia pianista,
muito menos uma cantora. Era tão medíocre nisso quanto em todos os outros hobbies que se metera a aprender. No entanto, a música a preenchia de
uma forma especial. Por mais que não tivesse sido abençoada com o talento, dedicava
algumas horas de seus dias ao piano elétrico amarelado.
No meio de alguns gritos
desafinados, Lira foi interrompida por um estrondo. Correu para a janela e
abriu a cortina para observar. Nenhum sinal de desordem. Os vizinhos estavam
calados, o sol aquecia suas bochechas e o único som externo era um cachorro
latindo no quarteirão seguinte.
Não deu importância ao barulho e
voltou a tocar. Estava decidida a aprender Lábios
Compartidos com perfeição antes do fim de semana. Depois de algumas notas,
o piano e o ventilador desligaram em uníssono. O canto desavisado continuou ecoando
sozinho. Irritada, levantou em direção ao abajur para testar a energia da casa.
No segundo em que apertou o botão
do abajur, mil barulhos mais ensurdecedores que o anterior se fizeram ouvidos. Caiu
no chão em angústia. Parecia que o mundo inteiro estava prestes a desabar sobre
sua cabeça. Teve a sensação de ser comprimida.
Voltou às janelas em pânico e viu
uma tempestade que não existia há poucos minutos antes. A chuva já havia
alagado a rua e derrubado um poste. Os relâmpagos acendiam e apagavam como
luzes natalinas. Alguém tirava roupas do
varal no apartamento da frente. Tudo era caótico. O temporal, porém, era mudo.
Lira não conseguia ouvir uma gota
d’água sequer. Sentia-as derreter sobre sua pele, uma por uma, mudas. Depois do
último estrondo, todos os outros ruídos se fizeram inaudíveis. Deitou no chão
para sentir o prédio vibrar com os trovões. As luzes brancas clareavam o teto
do quarto como uma mensagem. Não ouviria mais
nada.
Respirou fundo e fechou os olhos.
Ficou absorvendo o calor do tapete. Tentou, em vão, gritar. A solidão a abraçou carinhosamente.
Não teria mais nem a si mesma. O choro foi inevitável. Haviam tantas lágrimas
quanto gotas de chuva lá fora. Talvez inundasse o apartamento. Não se
incomodaria. Permaneceu no tapete até cair no
sono.
Lira acordou desnorteada. Olhou
as horas no telefone: 15:03h. Havia dormido por quase vinte e quatro horas. Havia
uma dor simétrica no interior dos ouvidos. Não era agonizante. Era apenas um
constante lembrete do que a tempestade lhe trouxe.
Amarrou o cabelo em um coque
desajeitado e jogou água no rosto. Encarou a imagem inchada no espelho. Parecia
a mesma. Pegou um pacote de biscoitos velhos e resolveu ir a um hospital. Queria
ao menos entender a gravidade da situação. Não desistiria de si mesma tão
fácil.
As ruas nunca tinham sido tão silenciosas.
Pessoas corriam em todas as direções; carros costuravam as rodovias com pressa.
A vida da cidade grande mantinha seu ritmo intenso. Observar aquilo com a quietude
da mudez fazia tudo parecer uma obra de arte sem graça. Era como se a aura tivesse
sido retirada e só mantidas as cores.
Após horas de espera na
emergência do hospital, nenhuma resposta. Os médicos estudaram a cabeça de Lira
exaustivamente. Disseram não ter nada de errado. Todos os exames indicavam
morfofisiologia dentro da normalidade. Não havia quadro infeccioso. A única
hipótese não descartada foi psicose.
Voltou para casa com um frasco de
analgésico e uma receita de antipsicótico. Só ela sabia o que ouvira naquela
tarde. O fragor foi tão intenso que seria impossível descrevê-lo a qualquer um
que não o ouviu. Pensava ter estourado os tímpanos.
Os dias seguintes foram de pura
agonia. Passaram-se exatos treze dias mudos.
Treze dias alternando entre ódio
e compreensão. Jogou fora seu amado piano elétrico e os aparelhos de som que tinha
em cada cômodo do apartamento. Recusou-se a sair de casa e a contar a outras
pessoas o que aconteceu. Às vezes tentava morrer por inanição. Às vezes tinha
pena de si mesma. Ficava jogada no tapete do quarto na mesma posição daquele
dia na esperança de que algo mudasse.
Inventava justificativas para o
ocorrido. Achava que talvez a natureza a tivesse punido por abusar tanto de
seus sons. Ou que estivesse tendo um longo pesadelo e sua audição fosse voltar
em breve. Usava cotonetes todos os dias para cutucar os ouvidos em busca de
algo. Nada. Rezou a todos os deuses e deusas que se lembrava. Implorou ao
universo por misericórdia. Nada. Completamente sozinha.
No décimo terceiro dia a comida
acabou. Incapaz de usar o telefone, entendeu que teria de sair de casa. Desceu
as escadas do prédio de pantufas. Não conseguiria escutar os comentários das
pessoas nem que quisesse. Caminhou rapidamente até o mercadinho no fim da rua.
Resolveu estocar comidas
enlatadas para que pudesse sair o mínimo possível do apartamento. Também não
tinha animação para cozinhar. Estava vivendo por inércia. Faria apenas o que
fosse simples. Montou uma pirâmide de latas em sua cesta e andou distraída em
direção ao caixa. Antes que percebesse, estava no chão com todas as latas.
Havia se esbarrado em um homem. Ele
estendeu a mão para levantá-la.
“Me desculpe.”
Lira não entendeu. O mercado
continuou mudo. Só existiram aquelas duas palavras. A voz do homem foi como uma sinfonia. Cada canto de seu ser
urgia por aquilo. A sensação de ouvir, qualquer coisa que fosse, era tudo o que
ela mais apreciava sobre a vida. “Como?”,
questionou-o. E o homem pôs-se de joelhos e começou a chorar.
Ele contou a Lira sobre a tempestade
do fim de março. Soluçando, tentou descrever o barulho que ouvira. Jurou não
escutar nada há treze dias. Era violonista, e, assim como ela, não era capaz de
ouvir nada senão um ao outro.
Lira e o homem eram vizinhos há
mais de dez anos
e imersos em seus próprios universos
nunca haviam trocado um bom dia
sequer.

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