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Cidade de Vidro - Parte 1.

- Hm... olá, eu acho. Não sei se isso funciona. Espero que alguém me escute um dia. Queria registrar minha passagem por aqui caso algo aconteça comigo.
Acho que meu primeiro dia foi em setembro - haviam flores. Se em algum momento eu soube como cheguei aqui, já não me lembro. Se existi antes da Cidade de Vidro, esse alguém está morto.
A esse ponto já não tenho muita noção de datas ou horas. Pela contagem de solstícios e equinócios devem ter se passado mais de dois anos. Em algum momento acordei em uma cama desconhecida em uma cidade desconhecida e então todo o passado tornou-se desconhecido.
No início foi desesperador. O silêncio aqui às vezes me entorpece. Parece que a solidão total arranca algo de você. Até o ar é um pouco vazio. Lembro de tentar correr para longe e por um tempo tive a esperança de que chegaria a algum lugar ou a alguém, mas nunca aconteceu.
Viver aqui não é de todo ruim. Eu tenho a comida de uma cidade inteira e toda a paz que possa desejar. Adotei o andar de cima de um bar como minha casa. Geralmente passo os dias escutando fitas antigas. É o mais próximo de outra pessoa que consigo chegar.
As estátuas ainda me incomodam um pouco, então prefiro não me aproximar delas. No começo achei que fossem decorativas ou algum tipo de obra artística, mas ninguém em sã consciência faria algo tão perturbador propositalmente.
Existem imagens em vidro por toda a cidade. Tamanho real. Milhares delas espalhadas por cômodos e ruas. Tenho teorias de que um dia foram pessoas e algo chegou de súbito e congelou todas elas. As que estão ao léu foram desgastadas pelas chuvas. As que estão em áreas cobertas parecem tão reais quanto eu mesma.
É, achei que o que quer que tenha vitrificado toda aquela gente ainda estaria aqui. Tive medo, mas já é um sentimento difuso pelo tempo. Depois do medo veio o desespero, e cheguei a desejar ser uma estátua como eles. O desespero e o medo se foram, assim como a esperança de ir embora, porque nada nunca acontece aqui.
Se não fossem as mudanças de estação eu diria que todos os dias são iguais. A Terra ainda parece girar. Meu cabelo cresce. O mato alto decora as ruas da cidade. O tempo passa e a Cidade de Vidro sempre permanece parada e silenciosa.
Hã...
É o seguinte: estou angustiada. Gravo isso porque acho que tem mais alguém aqui. Não sei onde está e me preocupa imaginar quem possa ser. Pensei ser única, mas há dois dias tenho encontrado rastros.
O primeiro foi um estrondo no meio da noite. O barulho não deve ter sido tão alto, mas diante de tanto silêncio meus ouvidos já não mais sabem ouvir. Acordei assustada e corri para a janela do quarto. Uma estátua havia estilhaçado inteira. Isso nunca aconteceu antes. As estátuas não quebram sozinhas. Penso ter ouvido passos em seguida, mas essa parte pode ser delírio meu.
No amanhecer me aproximei da estátua para analisar o ocorrido. No meio dos cacos de vidro havia uma pedra. Uma pedra. Até onde eu sei pedras não caem do céu. Era óbvio que alguém jogou aquilo para quebrar a estátua. Não fui eu.
Resolvi me esconder. Escolhi um apartamento para passar a noite e me isolei aqui dentro. Fiquei restrita a observar a cidade apenas por um furo em uma persiana. Quando escureceu vi uma luz inconstante passar no fim da rua. Parecia alguém com uma vela.
Desde então barulhos indefinidos me perturbam. Às vezes são passos distantes, às vezes soam como vozes. Não sei o que fazer. Acho que vou ficar nesse apartamento observando até esgotar a comida. Espero não ser encontrada antes de encontrar quem quer que seja.

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