Pular para o conteúdo principal

Ampulheta.

Quando a conheci já não restava muito tempo. Foi sofrido, confesso. Nunca tinha ouvido falar de um fenômeno tão doloroso. Encontrei-a já no chão e faltavam-lhe as pernas. Chorava como se alguém tivesse as arrancado, mas não havia sangue e éramos só nós dois. Ela não conseguia falar e eu não conseguia entender. Queria ajudar mas nada parecia ter acontecido.
Foi então que uma brisa leve nos abraçou e a moça começou a se contorcer. Encarei seu corpo em confusão. Suas mãos dissolviam em migalhas com o vento. O susto levou à angústia, que levou ao desespero, que não levou a nada. Tentei juntar os farelos, mas foi em vão. Uns conseguiram encontrar o caminho de volta, outros já não eram nada além de memórias.
Tentei segurá-la, mas a menina de areia desmanchou com meu toque. Gritamos, nós dois. Ela pela dor e eu pelo mais puro desespero de sentir alguém morrer e não conseguir evitar. A cada segundo mais partes se desfaziam e mais alto ela chorava. Seu olhar tinha urgência pelo epílogo. Os grãos de areia pesavam uma alma que já não queria mais existir.
E se foram, um a um. Assoprei-a e fui seu fim. Imaginei que fosse a esperança de um aflito, mas fui lástima. O cerne se desfez lentamente, como um sádico aproveitando cada segundo de dor. Os gritos ecoaram com o vento que a levou embora. Não soube seu nome. Não soube quem ela era. Toda a sua existência agora é um monte de areia muda sujando meus pés.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Adam.

foram exatos dois anos cinco meses e vinte e dois longos dias até que pudesse retornar para casa em todos os segundos recordei-me do som de sua voz dos dizeres poéticos do sotaque etílico dos dentes desalinhados das graças que eram intrínsecas a ela meus lábios lembravam do gosto meus olhos ansiavam pelos cabelos escuros meus dedos sabiam o mapa perfeito de sua pele tudo sobre ela era meu e eu fui inteiro dela foram exatos dois anos cinco meses e vinte e dois longos dias até que pudesse retornar para casa sentado na calçada pensei no que dizer em como explicar justificar inventar uma forma de dizê-la que nunca quis machucá-la que ela não tinha culpa de minha iniquidade que soçobrei ao desespero que não houve intenção de desgraçá-la  e mesmo consciente de que nenhum roteiro me salvaria toquei a campainha com dedos trêmulos (foram exatos dois anos) aguardei o que pareceu uma eternidade e nenhum olhar conhecido me atendeu (cinco meses) eis que com um sopro de coragem bato à porta esmu...

Limbo.

Ouroboros.