19:47h
- Oi, sou eu de novo.
Tenho observado o movimento das ruas há três dias. Pretendia ficar nesse apartamento por mais tempo, mas já não há água. Preciso fazer algo para emboscar essa mulher que agora divide a Cidade de Vidro comigo. Talvez ela saiba de onde viemos e possa me tirar daqui. Talvez ela seja a origem de tantas estátuas. Quem quer que seja, me deve respostas.
Eu a ouvi várias vezes. Oscilou entre grito e choro até andar em silêncio. Soava desesperada, mas desconfio ter sido um truque. Ela estava procurando alguém e eu sou a única aqui. Provavelmente queria que eu aparecesse em misericórdia. Não o fiz.
No fim da tarde de ontem, ela encontrou minha casa. Consegui enxergar a silhueta correndo para o andar de cima do bar. Cabelo castanho na altura dos ombros. Fechou as cortinas como se soubesse estar sendo observada. As luzes ficaram ligadas a noite inteira. Tive a impressão de escutar uma das minhas fitas, mas não tenho certeza. Estamos longe demais.
Estive esperando o escurecer. Ela não saiu do bar desde ontem e nem imagino que vá. Organizei suprimentos para meses lá dentro. Não há motivos para sair. Não há nada aqui fora. Minha ideia é arrastar a mulher para longe do bar para que eu possa entrar e me trancar lá dentro. Se minha visão não me trai, ela parece ser esguia o suficiente para não conseguir arrombar as portas. Estarei segura. Depois penso em como lidar com ela.
Preguei o gravador em minha blusa para registrar qualquer incidente que possa acontecer no caminho. Talvez alguém escute isso aqui um dia.
20:20h
- Então...
Estou ofegante porque já não sou acostumada a falar e andar ao mesmo tempo. Na verdade, deve fazer alguns meses que não rodo a cidade... Não que seja grande assim, mas sempre restringi meus passeios no sol para alguns metros na frente do bar. Não há necessidade de ir para perto das estátuas.
...Estou atravessando a penúltima rua antes do bar. Ando devagar porque lanternas chamariam atenção. A luz da lua e o reflexo do vidro estão me servindo de guia... Eu não tracei um plano exatamente. Acho que vou tentar encontrar um lugar não visível para me esconder enquanto penso em algo.
Minhas pernas doem... Acho que meus músculos devem estar atrofiando. Vou lembrar de fazer exercícios quando tudo voltar ao normal... Eu disse normal? Quem imaginaria que um dia eu ia considerar isso minha vida normal?
20:28h
- Cheguei.
Estou agachada atrás de um banco. Nada muito confortável. O bar está do outro lado da rua. Meu alvo está a poucos metros de distância. Consigo escutar sua movimentação no andar superior. Não parece muito cuidadosa. Entre nós apenas o banco e algumas estátuas.
Peguei algumas coisas pelo caminho. Para ser sincera não consigo enxergar se são pedras ou pedaços de vidro. Acho que o único jeito de fazer a mulher sair é chamando atenção aqui fora. Espero não ser vista. Assim que ela se afastar eu corro para dentro. Só quero minha casa de volta.
...
É, parece que minhas pernas não foram as únicas a perder a força. Na minha cabeça seria fácil acertar algo na janela, mas não está sendo. As pedras caem no meio da rua sem soar o suficiente. Acho que preciso levantar para mirar melhor.
...
O quê?
Não é possível...
Eu sou estúpida...
Acertei uma estátua.
Meus ouvidos estão zunindo.
Isso ainda está funcionando?
...Estou atrás do banco esperando voltar a escutar. A moça está descendo as escadas. Estou vendo pela sombra das cortinas. Ela está vindo para cá. É minha chance.
20:52h
- Eu... eu... não sei o que dizer. Fiquei esperando a mulher se aproximar para que eu garantisse minha corrida, mas esperava tudo menos aquilo. Ela é a minha cópia. Nós somos idênticas. Ela parece menos cansada e jovem e assustada e tem o cabelo mais curto, mas sou eu... Como isso é possível? Eu tenho irmãs? Eu estou doente? De onde ela veio?
Estou correndo não sei para onde. Não sei como vim parar aqui. Não me lembro de quem sou. Não lembro de nada. Eu morri aqui e aquela mulher vai morrer comigo. Estamos todos mortos.
Tudo o que existe na Cidade de Vidro são as dores e delírios da solidão irreparável.

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