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Apartamento 402.

Moro nesse prédio há três anos. Nos dois primeiros tive a sensação de viver sozinha. Os corredores eram vazios. Os elevadores sempre parados no andar em que eu deixava. A garagem cheia de carros acumulando desgaste. A única alma viva era o porteiro que aparecia dia sim, dia não para limpar a escadaria. Foram dois longos anos. 
Era incômodo ser a única moradora em sete andares. Certo ponto comecei a cumprimentar o prédio com bom dia e boa noite quando voltava para casa. Virou hábito. Eu me sentia sociável e por isso tornou-se irrelevante a falta de alguém. Acostumei. 
Em um dia qualquer, conheci um vizinho. Foi tão improvável quanto natural. Observando minha chegada da janela do primeiro andar, Senhor Antônio respondeu meu cumprimento ao prédio como se fosse a ele. Ele mora aqui há vinte e cinco anos e vive recluso desde que sua esposa faleceu. 
Senhor Antônio me cumprimentou por quase uma semana até me chamar para tomar café em sua casa. O apartamento em geral lembra muito o meu. Algumas plantas e quadros espalhados suprem a decoração de quem tem preguiça de preencher o ambiente. Cortinas fechadas explicam a aparência exterior de lugar vazio. 
Senhor Antônio me contou de seus tempos de glória. Falou da esposa e de como viveram felizes nesse prédio até que um câncer de mama a levasse. Os resquícios da vivência da mulher estão por toda parte. Ele não moveu um retrato sequer desde que ela se foi. 
Nós combinamos de manter o café às terças. Ele é um bom contador de histórias. Sempre tem algo para ensinar e biscoitos frescos de sabores experimentais. Espera minha chegada do trabalho na janela para me receber com um sorriso caloroso. É estranho pensar que um homem de quase oitenta anos possa ter se tornado meu amigo. 
Conheci o segundo vizinho em circunstâncias delicadas. Alissa era uma menina um ano mais nova que eu e morava na cobertura. Disseram-me que nasceu e cresceu nesse prédio. Eu estava cozinhando quando ouvi o estrondo. Corri para a janela apenas para ver um relance de seu corpo sangrando no chão da garagem. 
Alissa morava sozinha. Segundo a perícia, estava bêbada e tropeçou na varanda. Alguns falam que ela sofria de depressão, outros dizem que foi um trágico incidente. Jamais saberei a verdade dela. O apartamento 701 vive fechado desde então. Ninguém tem interesse em alugá-lo. Senhor Antônio diz que a energia do sétimo andar é ruim. Meu ceticismo prefere achar que os preços do aluguel são altos. 
A terceira vizinha que conheci era minha companheira de andar. Para ser sincera, eu já a vi muitas vezes antes mesmo de conhecer Senhor Antônio. Ela ficava sentada lendo revistas antigas ou preenchendo palavras cruzadas no térreo durante a tarde. Nos cumprimentávamos vez ou outra. Às vezes ela não me reconhecia. 
Um dia cheguei mais cedo do trabalho e encontrei Dona Luiza chorando. Puxei uma cadeira e tentei ajudá-la, mas nem ela sabia explicar o que estava acontecendo. Bastaram segundos para que ela deixasse as lágrimas e me interrogasse. Quis saber meu nome, onde eu trabalhava e em que apartamento morava. Respondi e devolvi as perguntas a ela. Não veio tréplica. Ela não sabia nenhuma das respostas. 
Minhas conversas com Dona Luiza se resumiam a responder a essas mesmas perguntas a cada encontro. Eram poucas as vezes que ela me reconhecia. Conversávamos e em todos os fins de tarde ela me contava sobre uma moça gentil que conversava com ela – era eu. 
Cheguei tarde demais. O Alzheimer venceu. Há dois meses levaram Dona Luiza para um abrigo de idosos. Quando saiu daqui já não conseguia lembrar de sua própria história. Senhor Antônio me contou que ela já foi dona de um bordel famoso. Ela disse que era prostituta. Também já disse que trabalhava em um órgão do governo. É difícil saber. 
Os últimos vizinhos que conheço pessoalmente eram um casal. São separados há seis anos e não por acaso essa é a idade de seu único filho. A mãe mora no 201 e o pai no 601. Não sei dizer qual deles vive com a criança. O prédio é sempre tão silencioso que não parece ser lar de ninguém antes dos sessenta. 
A mãe é médica. Não sei qual especialidade. É uma mulher de poucas palavras. Comecei a esbarrar com ela no elevador quando mudei meu turno no trabalho. Parece que passa mais tempo no hospital do que em casa e mais tempo no celular do que no hospital. 
No início achei que ela não gostasse de mim. Nunca me olhava nos olhos e me cumprimentava com tom de quem estava sendo obrigada a tal. Só percebi que não era particular quando a vi descendo com a criança. Pareciam desconhecidos. 
O menino sempre conversa comigo nos poucos segundos até a garagem. É criativo e gosta de contar suas descobertas. A mãe inabalável com o jaleco no pescoço. A criança ignora sua presença. Há coisas mais interessantes para se preocupar. Essa semana aprendeu como se forma um arco-íris. 
Acho que o pai é músico. De vez em quando escuto alguém cantando de longe e imagino que seja ele. É a única pessoa do prédio que anda com um violão nas costas. Ainda não tive a oportunidade de compartilhar o elevador com ele. Nas poucas vezes que o vi estava saindo pelo portão. Não sei dizer que horas ele volta. Eu queria cantar um dueto.
Existem oito apartamentos cujos moradores me são um completo mistério. Ainda me sinto sozinha, mas nem tanto. Nas terças eu e Senhor Antônio levantamos possibilidades sobre os outros que nos cercam. Ele acha que moram mais crianças aqui. Eu acho que pode ter alguém que goste de ler. Por precaução, tenho mantido minha porta aberta durante o dia. Talvez alguém apareça me pedindo uma xícara de açúcar.

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