Pular para o conteúdo principal

Celeste.

Celeste era uma figura formidável. Tinha uma firmeza particular nos gestos e cheirava sempre a erva-doce. Nós conversávamos sobre tudo. A mente dela era cheia de histórias. Costumava me contar vidas inteiras de pessoas que nunca existiram.
Uma vez eu a machuquei. Foi quando descobri que sua pele era de seda. Foi como vários pequenos cristais quebrando ao mesmo tempo. Ela sorriu por entre muitas lágrimas. Quis disfarçar - eu aceitei.
Celeste nunca deixou de ser formidável, mas naquele dia surgiu nela um olhar que eu desconhecia. Seguiu inventando pessoas porque esse era o seu mundo. Aos distraídos pareceria a mesma. A dor agora me faz entender que todas as novas pessoas eram eu e ela. Éramos sempre nós dois.
Ela tentou me avisar. Deixou tudo nas entrelinhas. Inventou tantos outros nós quanto foi possível. Eu não aceitei. Não conseguiria ser nada além de mim mesmo. Eu tirei isso dela. Ela assumiu muitos nomes porque não sabia mais ser Celeste. Não queria ser Celeste.
A indelicadeza fez com que ela quisesse me punir. Precisava me devolver aquela dor de alguma forma. Não sabia como. Nunca fui seda, era ferro. E como ferro, não senti. Celeste então resolveu tornar-se mais uma - a última. Seria criminosa.
Ela me convidou para o fundo de sua mente. Mostrou-me o mundo inimaginável que havia criado sozinha. Disse-me que viveríamos lá sem que nenhuma dor a alcançasse. Assenti com o coração quente. Correu até mim para um abraço. Foi quando a soltei que percebi que havia algo errado. Sua pele já não era nada além de trapos. O sangue escorria pelas pontas dos dedos e pingava lentamente no chão.
Celeste correu para a beira do mar nas pontas dos pés. Pela primeira vez, estava muda. Se jogou contra as pedras com toda a força que lhe restava. E sorriu. Sorriu porque sabia que a única coisa capaz de penetrar minha pele seria seu sangue doce impregnado em minhas mãos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Adam.

foram exatos dois anos cinco meses e vinte e dois longos dias até que pudesse retornar para casa em todos os segundos recordei-me do som de sua voz dos dizeres poéticos do sotaque etílico dos dentes desalinhados das graças que eram intrínsecas a ela meus lábios lembravam do gosto meus olhos ansiavam pelos cabelos escuros meus dedos sabiam o mapa perfeito de sua pele tudo sobre ela era meu e eu fui inteiro dela foram exatos dois anos cinco meses e vinte e dois longos dias até que pudesse retornar para casa sentado na calçada pensei no que dizer em como explicar justificar inventar uma forma de dizê-la que nunca quis machucá-la que ela não tinha culpa de minha iniquidade que soçobrei ao desespero que não houve intenção de desgraçá-la  e mesmo consciente de que nenhum roteiro me salvaria toquei a campainha com dedos trêmulos (foram exatos dois anos) aguardei o que pareceu uma eternidade e nenhum olhar conhecido me atendeu (cinco meses) eis que com um sopro de coragem bato à porta esmu...

Limbo.

Ouroboros.