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Marina.

Eram 22h de uma sexta-feira qualquer e meus olhos preguiçosos buscavam da janela do ônibus a esquina de casa. Eu mal reagia aos solavancos do caminho. Estava desenhada em mim a apatia de quem beirava à exaustão. 
Quatro paradas depois, desci. Usei todo o resto de energia que eu nem sabia que restava em meu corpo para correr pela rua deserta. Entrei em meu apartamento como quem abria um baú de tesouro. Não pensei duas vezes antes de cair no sofá e respirar profundamente. Não queria pensar.
Fiquei deitada por talvez quinze minutos. Meu celular vibrava sem parar do outro lado da sala. Mensagens de voz de um número desconhecido. “Estou com seus textos. Você esqueceu uma pasta no banco do ônibus. Achei seu número em um dos papéis, perdão por entrar em contato tão tarde”.
Para ser sincera, era irrelevante. Todos os textos eram cópias de contos que já tinham sido recusados por pelo menos metade das editoras da cidade. A pasta era nada mais que uma lembrança física de minha mediocridade literária. Mandei jogar fora. 
O homem não entendeu meu descaso. Insistiu na devolução. Expliquei brevemente o teor do conteúdo e repeti que jogasse fora. Serviriam no máximo de papel para rascunho ou como embrulho para limpar janelas. Perguntou-me se poderia ler. Mantive a indiferença. Joguei o celular para longe, fumei dois cigarros e fui dormir.
Acordei no dia seguinte com uma mensagem que o homem intitulou de crítica imparcial. Tinha o tamanho de uma redação de vestibular. Foram tantos os elogios que dei um sorriso de canto - um meio sorriso. Agradeci. Em poucos minutos veio o convite tímido: “O que você vai fazer nesse sábado a noite?”
Saímos. Fomos para um pub do outro lado da cidade. A atração da noite era uma banda ruim que fazia cover dos Beatles. Foi a nossa primeira apresentação formal. Ele era alto e cheirava bem. Parecia ter se dedicado à aparência. Não o culpo. Eu também penteei o cabelo pela primeira vez em alguns dias.
Noite peculiar. Conversamos por horas sobre todos os assuntos possíveis. Se alguém nos assistisse juraria que nos conhecíamos há anos, tamanha foi a sintonia. Depois de alguns drinques, ele se ofereceu para me levar em casa. Fiquei o trajeto inteiro encostada na janela do carro pensando em como convidá-lo para subir.
Chegamos rápido, não havia trânsito. Ele segurou minha mão e apertou forte. Disse-me que eu era incomum e que gostou muito de conversar comigo. Dei-lhe um abraço nervoso e recebi um sorriso de volta. Desci do carro tropeçando e entendi que aquilo seria uma despedida. Pensei ter dito ou feito algo errado. Talvez bebido demais ou rido em horas que não deveria rir. Eu tinha certeza de que jamais veria aquele homem novamente.
Engano meu. No domingo, o homem me convidou para jantar. Na segunda-feira, almoçamos juntos. Na terça, passamos duas horas em uma ligação falando aleatoriedades sobre a vida. Isso continuou por exatas quatro semanas desde o dia em que esqueci a pasta no ônibus. Nos falávamos todos os dias e ele fazia questão de dizer a todo o tempo que eu lhe fazia bem e que ele não parava de sorrir com a minha presença. 
Eu estava feliz. Até as saídas do trabalho se tornaram interessantes. Sabia que todos os dias iria pelo menos até a esquina de casa em boa companhia. Eu tinha um amigo no ônibus. Usávamos a conversa para vencer o cansaço. Quando o cansaço vencia a conversa, compartilhávamos fones de ouvido. 
Eis que chegou a fatídica sexta-feira. Não notei nenhum comportamento anormal. Ele me convidou para jantar em sua casa depois do trabalho. Não foi um convite incomum. Já havíamos jantado juntos algumas vezes e eu estava curiosa para conhecer seu apartamento. 
Ele não sabia cozinhar, então pedimos pizza. Foi uma das nossas melhores noites. Ficamos na varanda conversando e dançamos ao som de Put Your Head On My Shoulder. Ele tomou algumas cervejas e eu fumei alguns cigarros. Era estranhamente não-estranho. Encaixávamos muito bem. Fomos para a cama, como bons amigos fazem. 
Voltei para casa pela manhã. Ele brincou que não me deixaria ir embora. Sorriu. Para mim, tudo permanecia o mesmo. Esperei algumas horas por mensagens dele. Não vieram. Pela primeira vez em quatro semanas, não houve o menor sinal de sua existência. Culpei a ressaca. Ele não podia simplesmente desaparecer.
Dia seguinte. Zero mensagens. Resolvi mandar um oi para saber o que tinha acontecido. Muitas horas depois, uma desculpa automática. Estava sem tempo. Falaria comigo quando pudesse. Eu já sabia o que estava por vir.
Mandei outra mensagem depois de alguns dias perguntando se estava tudo bem entre nós. “Marina, nós somos bons amigos”, ele disse. E então tratou de nunca mais aparecer.

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