23:48h. Silêncio total.
Girei as chaves com cuidado e entrei em casa. Nenhuma luz acesa. Se minhas preces fossem ouvidas, ela estaria dormindo. Seria mais fácil me justificar pela manhã.
Só tive o tempo de abaixar para tirar os sapatos. Ainda sem levantar o rosto, escutei sua respiração. Havia uma silhueta elegante na porta da varanda. Cabelos presos, olhar vazio. O vestido branco pairava calmamente com o vento. Miriam sempre teve uma presença indesvendável que parecia fazê-la levitar.
- Reunião de última hora no trabalho. Não tive como telefonar. Foi uma urgência. - anunciei, já imaginando os questionamentos que viriam.
Sem resposta. Não se deu o trabalho de mover um músculo. Era possível sentir sua raiva do outro lado do cômodo. Miriam costumava ser explosiva. Dizia o que pensava até que eu estivesse de joelhos em seus pés. Sempre com requinte. Dessa vez, havia algo diferente. Continuei congelado na porta como quem foi pego em flagrante.
- Você pode perguntar aos meus colegas, se quiser. Eu estava em uma reunião. Deveria ter ligado para avisar, me desculpe. Estou cansado, podemos dormir? Amanhã explico tudo. - arrisquei.
Atravessou a sala sem me olhar. O som de seus passos se confundia com o descompasso do meu coração. Encheu dois copos de conhaque. Voltou para a varanda deixando um deles na ponta da mesa. Um convite.
Permaneceu em silêncio até que eu desse meu primeiro gole. Não me olhava, mas sabia. Uma lágrima brilhou em seu rosto lentamente. A frase veio primeiro em sussurros.
- Eu não me importo em ser só mais uma.
Pausa. A dor era quase palpável.
- Eu não me importo em ser só mais uma, desde que você ainda me ame.
Tentei falar, mas sinalizou com as mãos para que eu desistisse. Não me ouviria. Pedir perdão deixa de fazer sentido em algum ponto. Eu não quis negar. Ela já sabia. Não importava como, ela sabia. Mentir tornaria meu crime maior.
- Miriam, você é a mulher que eu mais amo na vida.
Ela foi de fato o ser mais admirável que conheci. No nosso primeiro encontro, eu já sabia que nos casaríamos. Eu não suportaria o desalento de não tê-la. Miriam se dedicava a mim. Fazia o possível e o impossível para tornar minha vida mais leve. Gostava de sorrir ao meu lado. Vivia.
Não sei explicar o que aconteceu. Talvez tenha sido o tempo, talvez tenha sido ela - talvez tenha sido eu. Costumava dizer que o brilho se esvaiu. Essa era minha justificativa. Era mentira. Estava tão formidável na porta da varanda como sempre fora.
- Que essa seja a última vez que você mente para mim. - sorriu.
Virou o copo. Ela nunca foi de beber. A expressão do vazio completo tomou conta de seu rosto. Pegou minhas mãos e me levou para o quarto. Tomava cuidado para não me olhar nos olhos. Deitou distante.
- Eu te amo, Miriam.
- É tarde.
Os corpos foram encontrados três dias depois. Uma denúncia anônima relatou mau cheiro vindo do apartamento. Provavelmente um vizinho. Morreram abraçados. Amor delíquio. O vestido branco no chão e dois copos de conhaque.

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