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Íris.

As primeiras coisas que se notavam eram as mãos. Unhas mal pintadas e anéis prateados se contorcendo rapidamente para preparar os drinques de uma plateia sedenta. Sempre com o olhar baixo e respostas prontas para engraçadinhos. A vi de relance muitas vezes. Em todas tinha feições de quem não queria conversas.
Íris era uma espécie de faz-tudo. Parece ter sido contratada como bartender, mas não era raro encontrá-la no caixa, nos controles de áudio ou impacientemente ajudando alguém que tinha se excedido na vodka. Eu não bebo - bebia por ela. O álcool me concedia o prazer de alguns poucos segundos de diálogo impessoal enquanto ela me ajudava a escolher meu pedido.
Ela trabalhava no bar todas as noites. Nunca faltava. Disseram-me que estudava música e precisava do dinheiro para investir em sua carreira. Imaginei que quisesse ser cantora. Vivia com fones de ouvido no pescoço e se escondia neles nos dias menos movimentados.
Demorou um mês para que eu conseguisse fazê-la me olhar nos olhos. Perguntei sobre suas bandas favoritas e ela se permitiu elogiar o tom barítono de Eddie Vedder que berrava nos alto-falantes antigos do bar. Insisti. Ela parou de limpar o balcão e sorriu. Desafiou-me a descobrir sozinho. Foi nesse momento que começamos o nosso jogo. 
Eu só tinha uma chance por dia. Quando errava, ela voltava a me ignorar até a próxima vez que eu aparecesse por lá. Comecei a vê-la trabalhar duas ou três vezes por semana. Conversávamos por horas sob o pretexto de conseguir mais informações para que eu acertasse. 
O prêmio mudava com frequência. Ás vezes ela me prometia drinques de graça, às vezes dizia que me pagaria um jantar. Não fazia diferença. Eu não ganharia. Nenhum prêmio seria mais fascinante do que ser recebido por ela com um sorriso de canto.
Tentei acertar muitas vezes mesmo sem desejar vencer. Ela desistiria de mim se eu desistisse dela. Chutei primeiro todas as bandas de rock clássicas. Aerosmith, Eagles, Led Zeppelin, Scorpions. A cada erro ela colocava o cabelo atrás das orelhas e resmungava distante em reprovação. Kiss, Queen, Rolling Stones, Nirvana, Black Sabbath. Sem chances. 
Repetimos o jogo por semanas e semanas incansavelmente. Por vezes esquecíamos dele e nos perdíamos nos olhos um do outro. Íris tinha um toque perverso. Refrescante. Frustrava todas as minhas tentativas de sequer encostá-la pela satisfação em ver o desejo em meu rosto. Corria para longe e me comia com os olhos. Cruel, mas irresistível.
Em certo ponto comecei a ficar sem opções. Meu espírito competitivo não me permitia seguir errando. Já havia me rendido a uma lista de bandas que encontrei no Google e ainda assim sem sucesso. Ela se recusava a me dar dicas. Instigava mais dizendo que eu não me arrependeria de acertar. 
Nosso jogo aconteceu por um outono inteiro. O outono mais curto de toda a minha vida. Contava as horas para sair do trabalho e vê-la. Meus amigos brincavam dizendo que tinham me perdido para o alcoolismo. 
O primeiro dia do inverno foi o meu limite. Cheguei ao bar perto do final do expediente de Íris. Só restavam os últimos bêbados se organizando para ir embora. Quase não conseguiu conter a euforia em me ver, mas era discreta. Murmurou algo como “pensei que você não viesse mais” em um risível esforço para se manter séria e focada na limpeza das mesas.
Fiz que ia abraçá-la e peguei seus fones de ouvido. Corri para o fim da rua e os coloquei no meu celular. Ela fingiu ficar brava. Não estava, mas queria os fones de volta. Prometi que os devolveria se ela escutasse uma única música comigo. Aceitou. 
Ficamos ali dançando desajeitadamente ao som de Make It Wit Chu. Eu, Íris, os fones de ouvido e os primeiros raios de sol da manhã nascendo. Quase cinco minutos girando e gargalhando. Ela deitou em meu ombro. Eu conseguia sentir seus lábios a centímetros do meu pescoço.
- Que banda é essa? - sussurrou.
- Queens Of The Stone Age.
- Acabou de se tornar a minha favorita.

Comentários

  1. Caralho. Você não decepciona, que texto foda, como você descreve sentimentos me sensibiliza demaisss

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