- Aqui nunca chove. Algo na chuva me deixava com saudade de casa, então parou de chover. Também nunca é dia. Costumava temer o escuro, mas descobri que não sei escrever em claro. Então parou de amanhecer. É bonito, mesmo assim. Aqui a lua clareia mais que o sol.
É espaçoso, eu diria. Um mundo confortável para uma claustrofóbica. Antes haviam paredes, mas faziam uns barulhos estranhos com o vento. Aí derrubei. Eram desnecessárias, no fim das contas. Não tenho vizinhos e não chove - para que mais eu precisaria de paredes?
Tinha também a questão do tempo. Antes a minha vista cansava quando eu escrevia demais. A coluna gritava com a má postura. Não conseguia andar dez metros sem ficar completamente exausta. O refluxo na mitral me envelheceu meio século em poucos anos. Poderia ter me adaptado lá, mas eu queria correr na praia. Aí decidi não voltar mais.
Pensei que fosse me sentir mais solitária com a mudança. Às vezes sinto vontade de dançar uma valsa ou coisa assim, mas nada que meu espírito de sujeito-ilha não aguente e até prefira. Já faz tempo. Se tem algo que eu trouxe do antes é a consciência de que a alma é capaz de se acostumar até com a mais árida das situações.
Aí você pode me perguntar: “se não há solidão, porque então eu estou aqui te ouvindo?”. Resposta simples. Não está. Nem existe. Você foi uma invenção curiosa com o único objetivo de sanar a minha necessidade de contar histórias. E vai embora do mesmo jeito que veio. Você e seus olhos amendoados tem prazo de validade neste mundo. Só quem não tem sou eu.
Honestamente eu nem sabia se ela tinha algum tipo de consciência. Desejei um ouvido e em instantes ela surgiu andando silenciosa do outro lado da praia. A primeira imagem humana que vi em meses. Caminhou até meu lado e sentou para encarar a mim e o mar. Tinha olhar de quem não era. Um pouco sufocante. Não que fizesse diferença.
Terminei meu monólogo e a mandei embora. Não foi. Algumas coisas só aconteciam se eu me concentrasse. Tentei novamente. Fechei os olhos, respirei fundo. Ouvi o som de areia se deslocando. Suspirei aliviada com a confirmação sonora de que ela estava se retirando.
Esperei alguns segundos antes de abrir os olhos novamente. A mulher estava em pé a poucos centímetros do meu rosto. Colocou as palmas das mãos nas minhas bochechas. Calor. Calor humano. Era real. Recuei alguns metros. Tremi. O coração subitamente se esforçava para vencer o refluxo. Como diabos alguém tinha entrado no meu sonho?
A mulher respirou fundo. Começou a tirar algo do bolso bem devagar. Agia com a cautela de quem não queria que eu tivesse um infarto fulminante. O objeto foi deixado no chão. Ela deu alguns passos para trás e fez sinal para que eu pegasse.
Demorou algum tempo para que eu conseguisse me mexer. Senti a miopia voltar. Tateei o chão com os pés em busca daquilo. Podem ter se passado minutos, não sei ao certo. Quando finalmente peguei o objeto, bastou um relance. Encarei o espelho sentindo o coração doer. Eu sabia que conhecia aqueles olhos amendoados de algum lugar.

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