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Ceci.

Nós nos conhecemos em dezembro de 91. Minha banda tinha acabado de lançar o primeiro álbum. Tínhamos shows agendados em quase todas as noites daquele mês. Milagrosamente não iríamos só abrir para outras bandas mais famosas e experientes - havia quem nos conhecesse e comprasse os ingressos na intenção de nos ver. Era a realização do sonho mais longínquo de todo garoto que passou a adolescência com uma guitarra usada tentando imitar os Rolling Stones.
Ceci tinha acabado de chegar na cidade. Ainda estava organizando o apartamento de dois cômodos que seria sua casa pelos meses seguintes. Tinha poucas certezas. A maior delas era a liberdade. Não conhecia nada e nem ninguém ali. Não tinha um passado, poderia inventar a vida que quisesse. Estava feliz em ser anônima.
Eu também não tinha muitas certezas. Quando a vi, ela se tornou uma. Estava tomando café em um bar/restaurante que ficava a duas quadras da minha casa. Ela fazia um esforço visível em tornar-se desinteressante, e quase conseguia. Usava as mesmas botas e casacos que todas as outras mulheres da cidade. Escondia os olhos em um par de óculos tão pesado que marcava seu rosto. Usava um chapéu preto na tentativa de disfarçar o avermelhado dos cabelos. Completamente normal, e ainda assim, fascinante.
Nunca soube explicar o que me fez pedir para sentar na mesa com ela. Gosto de pensar que algumas coisas só acontecem. Como se houvesse alguma mãozinha do destino ou uma força superior operando. Se não fosse ali, seria em uma praia ou um show qualquer. Eu me atrairia fatalmente por Ceci em qualquer circunstância em que nos encontrássemos.
Foi simpática. Escutou minhas frases tímidas com tanta atenção que esqueceu de comer. Tinha um riso manso. Mais ouvia do que falava. Demorei alguns minutos para notar seu sotaque. Era hábil na fala como uma nativa mas algo na pronúncia de algumas palavras denunciava uma língua estrangeira. Contou-me que estava começando uma vida nova ali e não quis me dizer de onde era. Só disse que Ceci não era seu nome verdadeiro, mas que eu podia chamá-la assim porque seria mais fácil.
Eu não queria que o café acabasse. Havia algo de particular nela que eu ainda não tinha conseguido decifrar. Precisava de mais tempo, então me ofereci para ajudá-la a desempacotar as caixas da mudança. Não pensou muito. Aceitou e disse que pagaria uma bebida depois em agradecimento. Eram tempos mais simples.
O apartamento tinha a marca dela. Despretensioso, mas bem pensado. O carpete do chão dava uma aparência de estúdio ao lugar, o que combinava com o piano de armário e os dois violões pendurados na parede da janela. O cômodo sala-cozinha estava praticamente pronto. Faltava apenas preencher a estante de madeira com o caos de livros, vinis, fitas e uns poucos CDs que estavam carinhosamente embalados nas caixas. Foi essa a minha tarefa daquele dia.
Acho que Ceci sabia o que estava fazendo quando me colocou para ver tudo aquilo. Era o jeito dela de falar sobre si mesma sem que dissesse uma única palavra. Os livros se dividiam em quatro línguas diferentes. Não consegui entender boa parte dos títulos. Reconheci alguns clássicos da literatura internacional e uns livros que pareciam atlas de botânica e entomologia. Também alguns nomes de filósofos que eu tinha ouvido falar na época da escola. Parecia um pouco mais do que uma cabeça de vinte e poucos anos tinha vontade de tolerar, mas estava ali. E tudo cheio de anotações nas bordas.
A surpresa maior veio na organização da música. Demonstrava um interesse particular por bandas dos anos 70. Ouvíamos muitas coisas em comum. Ela tinha o meu álbum favorito do Cheap Trick, Live In Budokan (1978). Fiquei feliz com a descoberta e o separei em um canto do chão para que ouvíssemos mais tarde. Estava tão distraído que quase deixei passar um encarte azul familiar. No meio de Sabbath, The Doors e The Who estava o álbum da minha banda. Não pude evitar o sorriso.
Respirei por um minuto e perguntei despretensiosamente a opinião dela sobre. Ceci saiu do cômodo quarto-banheiro embolada em luzes de natal. Rindo, pediu ajuda para se soltar sem quebrar as lâmpadas. Foi ali, a vinte centímetros de distância do meu rosto, que eu a entendi pela primeira vez. Começou a descrever o que sentiu quando ouviu aquele disco - o meu disco. Falava sobre as músicas que compus com tanto apego que elas pareciam mais dela do que minhas. Significou até as linhas que só fizeram sentido para mim quando eu estava bêbado.
Evitou me olhar nos olhos enquanto falava. Metade para camuflar o olhar que brilhava pela música, metade para não demonstrar que estava tão extasiada quanto eu por poder tocá-la. Fiz o trabalho mais lento da minha vida com as luzes. Quase desejei que a amarrassem para sempre. Alguns dos segundos mais inacreditáveis da minha vida. E curiosamente reais.
Terminadas as lâmpadas, fui direto para a parede e peguei um violão desgastado coberto de adesivos. Ceci ficou me encarando do outro lado da sala. Confusa, mas animada. Eu tinha comentado que era guitarrista de uma banda. Só não tinha contado qual era. Comecei a tocar a música que ela disse ter sido sua favorita em todo o álbum. Ela entendeu antes mesmo do primeiro refrão, e eu tive o prazer de ter aquele olhar tão quente direcionado a mim pela primeira vez. Perdi o ar e errei algumas notas. Fiz que ia recomeçar e ela perguntou se podia me acompanhar no piano. Foi um dueto impecável. Simplesmente impecável.
Passamos o resto do dia juntos - eu, Ceci, o piano de armário e o violão. Não houve muito avanço na arrumação do apartamento. Ela quis saber sobre as composições e anotou os acordes de todas as músicas. Estava genuinamente interessada em aprender a tocar o disco inteiro. Ficava irritada quando errava, colocava o cabelo vermelho atrás das orelhas e resmungava palavras incompreensíveis em outras línguas. Qualquer um diria que Ceci saiu diretamente de um desenho animado.
Perdemos a noção do tempo. Já escurecia quando começamos a almoçar restos de pizza do dia anterior. A dor da partida me incomodava antes mesmo que eu tivesse ido. Eu tinha que tocar em um show do outro lado da cidade naquela noite. Queria convidá-la, mas tinha medo de que ela percebesse que meus amigos eram visivelmente mais interessantes do que eu. Resolvi tentar a sorte. Ela teria que conhecê-los em algum momento e doeria menos arruinar tudo ali do que algumas semanas depois.
Deu um sorriso imenso com o convite e correu para se arrumar. Voltou em quinze minutos com um estonteante vestidinho preto e os cabelos soltos. Os braços e pernas à mostra me permitiram ter um vislumbre de suas tatuagens. Cobicei vê-las de perto. As imagens se misturavam entre animais, plantas, cartas de tarot e frases ilegíveis àquela distância. Carregava nos braços uma jaqueta com a inscrição “Message in a Bottle”, que eu rapidamente reconheci como uma referência ao The Police.
Chegamos no clube uma hora antes do show. Ceci foi incapaz de esconder a empolgação por estar no backstage. Cumprimentou até os desconhecidos mais carrancudos. Andava na minha frente e me puxava pelas mãos. Parecia querer fotografar tudo com os olhos. Às vezes se virava para mim e comentava alguma coisa. Eu nem conseguia ouvir. Estava anestesiado com o mais puro fascínio.
Apresentei-a aos amigos da banda e ela rapidamente se tornou o centro das atenções. Todos queriam um pedaço do olhar de Ceci. E estavam todos bêbados. Senti-a escapar de minhas mãos antes que eu pudesse ter certeza de que um dia ela esteve lá. Fiquei tonto. A realidade pesou meus ombros. Nós nos conhecíamos há menos de 24 horas.
Sentei no canto do sofá. Queria apenas fazer o show e ir embora. Tinha certeza de que a reveria em alguns dias, provavelmente sentada no colo do baixista. Estava tão envolta na conversa que parecia nem me conhecer. Cantava, dançava e bebia. E me fazia inexistente.
Fechei os olhos e esperei. Quando faltavam dez minutos, o peso do corpo dela afundou o sofá do meu lado. Percebeu minha chateação e passou as mãos no meu queixo gentilmente como quem queria ser escutada.
- Eles me contaram tudo sobre você. E disseram que eu fui a primeira pessoa que você trouxe para conhecê-los. Sou mesmo uma garota sortuda, não é? Minha vida é tão inusitada que às vezes nem eu acredito.
Ceci me calou com um beijo antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa. O hálito alcoólico parou todos os meus pensamentos. Não deu tempo nem de me sentir um idiota pela má interpretação. O resto da banda gritava e batia palmas, mas só estávamos nós dois ali. Nada era mais do que era.

Depois daquele dia, ela passou a assistir todos os nossos shows. Às vezes dançava a noite inteira com a plateia, às vezes descansava na lateral do palco. Nunca toquei tão bem em toda a minha vida. Quando saíamos dos clubes íamos para a casa de alguém comemorar e por vezes terminávamos no apartamento dela. No dia seguinte acordávamos de ressaca e descíamos para o restaurante onde nos conhecemos para uma dose de glicose no café.
Dois meses foram o suficiente para que Ceci se instalasse na cidade. Arrumou um emprego como professora de biologia em uma escola de ensino médio e também ensinava piano nos fins de semana. Era estranhamente responsável e tinha uma habilidade expressiva em mutar-se de Ceci a Cecilie - sua persona adulta que usava terninhos para esconder as tatuagens e era jeitosa com crianças.
Demorou mais do que deveria para que o passado dela começasse a me incomodar. Dizia ter vinte e quatro anos, mas podia ter quinze ou trinta a depender do ambiente. Em dois meses ela soube tudo o que era necessário sobre mim e eu continuei com a sensação de namorar uma desconhecida. Fugia de perguntas e ruborizava quando eu falava sobre a faculdade de biologia, que era o único fato conhecido de seu passado.
15 de fevereiro de 1992. Esse foi o começo do fim. O dia em que minha curiosidade superou qualquer confiança que pudesse ter sido criada. Ceci acordou cedo e disse que passaria o dia na escola. Deixou algumas panquecas em cima do balcão da cozinha americana e pediu para que eu trancasse o apartamento quando saísse. Eu devolveria a chave naquela noite quando nos encontrássemos em mais um show.
Ela mal bateu a porta e eu já estava de pé abrindo todas as gavetas em busca de documentos ou qualquer coisa que denunciasse algo sobre sua vida antiga. Nada estava escondido. Consegui identificar rapidamente duas das três línguas desconhecidas de sua estante: árabe e russo. Havia um punhado de moedas com a inscrição da união soviética e um dicionário de bolso que traduzia do árabe para o inglês. O dicionário tinha na capa uma bandeira do Marrocos.
Eu devia ter parado ali. Podia simplesmente confrontá-la em um momento oportuno fingindo ter identificado suas origens por causa dos livros. Não seria tão comprometedor. Eu não estaria errado. Até tentei, mas calar sobre aquilo era transtorno maior do que eu conseguiria consentir.
Foram horas folheando livros e desfazendo caixas. A parte mais difícil era colocar tudo nos lugares anteriores. Minhas descobertas não se estenderam muito. Era como se Ceci tivesse cuidado em deixar visíveis informações que parecessem segredos sem sê-los. E isso só tornava tudo mais interessante.
Eu não queria julgá-la. Nada do passado dela seria capaz de separar-nos. Ela nunca tinha mentido, mas eu me sentia traído. A omissão de informações era uma declaração de desconfiança. Ela sabia tudo sobre minha infância e minha família. Queria conhecer meus pais. Daquele jeito eu jamais conheceria os dela. “É justo”, pensei. “O que estou fazendo é justo”.
No meio da hesitação, uma foto se destacou na estante. Estava sendo utilizada como marca-páginas em um manual de anatomia. Era Ceci. Séria, de cabelos escuros e sem óculos - mas ainda ela. O fundo dizia em letras borradas: Láyla, 1987. Eu tinha conseguido um nome.
Não sabia exatamente o que fazer com aquilo. Guardei a foto e comecei a inventar os planos mais mirabolantes para abordar o assunto sem ofendê-la. Minha ideia final foi dedicar a ela Layla, do Eric Clapton, no show daquela noite. Sabia que ela entenderia a mensagem. E talvez ficasse tão emocionada com a música que ignorasse parte da chateação pela minha intromissão.
Eis o que aconteceu: Ceci cantou a música da plateia como cantaria qualquer outra. Nenhum brilho a mais ou a menos. Nenhuma piscada descompassada. Nenhuma percepção da minha acusação indiscreta. Insisti e perguntei o que ela tinha achado da homenagem.
- A música é linda, mas confesso que sempre torci pelo George Harrison - e continuou, rindo - Podíamos tocar Something juntos, o que acha?
Usou o mesmo tom inocente de sempre. Não parecia mentir, mas aquilo não fazia sentido. Era como se o nome não significasse absolutamente nada para ela, mas deveria, e aquela foto era a prova disso. Eu não iria me dar por satisfeito.
Não consegui dormir. Fiquei a noite inteira encarando seu indecifrável rosto adormecido e pensando em todos os cantos do mundo onde ela pode ter passado. Eu só queria saber. Só queria fazer parte de algo que fosse dela. Qualquer coisa. E ao mesmo tempo me perguntava “Do que você está fugindo, Ceci?” e tentava afastar da mente a ideia de que ela pudesse ter feito algo ruim.
A manhã seguinte foi a última vez que vi seu rosto. Eu estava transtornado. As olheiras escancararam minha noite insone. Ela preparou um café incompleto com o pouco que tinha na minha geladeira. Era sempre melhor quando dormíamos na casa dela. Ainda assim, queria me animar.
Explodi. Poderia ter sido menos rude. Apontei os dedos para ela antes que ela terminasse de comer. Falei sobre as moedas, o dicionário árabe-inglês e a foto. Ficou me observando, incrédula e muda, enquanto eu a implorava por explicações (e ao mesmo tempo por perdão).
Ceci juntou suas roupas e objetos pessoais, ainda sem dizer nada. Arrumou a bolsa e foi direto para a saída. Amaldiçoou meus ouvidos com um suspiro decepcionado. Em segundos, a porta levou meus cabelos vermelhos embora e eu não soube nada sobre ela.
- Tchau, Láyla - gritei.
- Tchau, Eric.

Os dias seguintes foram estranhos. Tive raiva de mim mesmo por ter estragado o que meu amigos profetizaram como o grande amor da minha vida. Também tive raiva dela, e mais ainda de sua ausência. A plateia dos shows tornou-se inanimada. Eu me perdia buscando-a nos cantos do palco. Desejava seu olhar encantado mais do que qualquer coisa. Mil vezes me arrependi. Preferia tê-la por perto mesmo que fosse alguém sem passado. Estivemos ali, só nós dois. Nada deveria ser mais do que era.
A carta chegou duas semanas depois. Um envelope branco adesivado com uma clave de fá. Eu reconheceria aquela caligrafia em qualquer alfabeto. Ela sempre soube dizer exatamente o que precisava.
“Fui menos Láyla do que Ceci. E não fui as duas. Espero que tenha valido a pena. Você já tinha me conhecido.”

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