74 foi um dos anos mais curiosos da minha vida, se é que posso dizer assim. O caso dessa moça aconteceu quando fui contratado para remendar a barragem do rio de cima. O trabalho deveria durar três meses. O dinheiro não era muito, mas incluía um casebre razoavelmente perto da obra e uma moto usada. Bom negócio.
A casa era apenas habitável. Moradia de passagem mesmo, zero conforto. Uns móveis poucos e paredes de concreto. O telhado precisava de conserto, molhava quando chovia. Na frente tinha um canto que eu chamava de varanda. Ventava bastante. De dia eu trabalhava e no anoitecer comia qualquer coisa numa venda e ia para casa. Ligava o rádio e ficava na varanda observando meus únicos vizinhos: um casal de uns 20 e poucos que tinha recém construído um lar ali no meio do nada.
Nunca soube exatamente porque eles decidiram morar no campo. Na idade deles eu gostava mais de agitação. Era bem bonitinha a casa. Feita com cuidado. Viviam só os dois: Elena e Pedro. Ele era alto e tinha traço de quem é filho de índio. Ela era meio desajeitada, caía muito. Os dois eram fracos de feição mas ficavam mais agradáveis quando estavam juntos. Pareciam sempre felizes.
Teve um dia que eu voltei da barragem mais cedo. Eles me viram passando na estrada e ofereceram um café. Era assim que todo mundo se comportava por aquelas bandas. Ninguém tinha muito, mas todos gostavam de compartilhar. Tinha bolo de carimã e torradas. O rádio falava algo sobre a inauguração de uma ponte no Rio de Janeiro.
A casa era ainda mais encantadora de perto. Eles tinham uma varanda de verdade, daquelas com rede. Pedro e eu ficamos conversando por lá enquanto Elena molhava as plantas com um regador improvisado. Eu olhava para ela quando ele se distraía. Não era bonita a moça, mas tinha um jeito interessante. Meio sonsa, meio travessa. Sorria todo o tempo.
Depois desse dia eu comecei a aparecer mais. Fizemos amizade. Eram boa gente. Trabalhavam ali na terra mesmo. Quase não saíam da área da casa. Eu ficava do meu canto vendo eles dançarem de noite. Não dava para ouvir, mas parecia seresta. Ele cansava rápido e ela ficava rodopiando sozinha por mais tempo. Quando eles iam dormir, eu dormia também. E foi assim por um mês.
Início de abril, eu acho. Acordei com o barulho de um carro. Estava com o motor ligado na frente da casa deles. Fui correndo lá ver o que era. A mocinha estava nos braços de Pedro. Quase verde. Tossia sem parar. Chamaram um carro para levá-la a um hospital na cidade. Ele disse ter sido um mal súbito na madrugada.
A casa ficou fechada por três semanas. Todas as noites eu espiava. Nenhum sinal de luz ou de seresta. Acendi velas e rezei pela cura de Elena. Eram boa gente, mesmo. Tinham muito o que viver ainda. E faziam falta os meus vizinhos. Foi uma infelicidade tamanha estar só.
Estranhamente, ela voltou sem Pedro. Levei flores e biscoitos para recebê-la. Aparentava muita saúde. Quando perguntei sobre ele, a moça me lançou um olhar confuso. “Eu deveria saber quem é esse?”, disse. Seguia sorrindo, então levei como piada. Ainda usava a aliança no dedo.
Fiquei aguardando o retorno dele. Tenho que admitir que torcia para que tardasse. Os dias sem ele foram os melhores. Eu podia olhá-la o quanto quisesse. Às vezes sentia culpa, mas ela tratava de me distrair com uma dança ou um olhar manhoso.
Os três meses de trabalho se tornaram cinco. Demorei a me dar conta da situação. Os cafés se tornaram jantares, os jantares se tornaram cervejas. Como que de repente, Elena estava deitada em mim e eu conseguia sentir seus cílios batendo em meu peito. A mocinha tinha tomado conta da minha vida. E nem sinal de Pedro.
Saudável estava, é verdade, mas falhava muito a memória. Primeiro, começou a esquecer coisas pequenas dentro de casa. Deixava comida no fogo, torneira aberta e não regava uma planta sequer. Depois, esqueceu de pentear e banhar. Pulava tantas refeições que as costelas se fizeram visíveis. Elena desaprendia tudo em uma velocidade assustadora. A cada dia de trabalho eu a encontrava com mais uma memória desfeita.
Em pouco tempo sua pele também começou a esquecer. Era como se nada a encostasse. No início, ela se desesperou. Implorava por beijos e carícias e chorava como se quisesse misturar meu corpo com o dela. Triste de ver, mas ainda me remetia àquela criatura indócil que amei meses antes. Durou pouco, porém. Tratou logo de ficar apática.
As escoriações tomaram conta do corpo. Sempre foi desengonçada, mas ali não sentia mais nada. Era frequente encontrá-la com as mãos em panelas quentes. As queimaduras eram tão graves que ardiam em mim. Elena mal piscava. Chegou até a tentar se desfazer de um pedaço de pele queimada com uma lâmina. Completamente alheia.
Evitei chamar um médico porque me faltava coragem. Não sabia o que diriam dela se soubessem que estava com outra pessoa. Não parecia que Pedro ia voltar, mas Elena não sabia dizer o motivo do desaparecimento dele. O nome não significava mais, mas o anel dourado seguia no dedo.
Minha tentativa de manter a situação em segredo acabou quando a mocinha sumiu. Sumiu mesmo, evaporou. Corri os arredores da casa mil vezes e não havia o menor sinal dela. Gritei seu nome, mesmo sabendo que ela provavelmente não se reconheceria mais. Nada. E tinha deixado para trás todos os pertences.
Peguei a moto e fui direto na polícia da cidade. Precisava encontrá-la, mesmo que isso custasse sua reputação. A esse ponto Elena era mais uma filha perdida do que uma amante. Relatei toda a situação ao delegado. Ele coçou a cabeça por alguns segundos e disse que iria procurar uns papéis. Voltou com o rosto um pouco transtornado.
- Odeio ser o corvo portador de más notícias, mas a senhorita Elena Moraes morreu há alguns meses com problema nos pulmões. Creio que o viúvo abandonou a cidade. Estamos falando da mesma pessoa?
Acredite se quiser.
A casa era apenas habitável. Moradia de passagem mesmo, zero conforto. Uns móveis poucos e paredes de concreto. O telhado precisava de conserto, molhava quando chovia. Na frente tinha um canto que eu chamava de varanda. Ventava bastante. De dia eu trabalhava e no anoitecer comia qualquer coisa numa venda e ia para casa. Ligava o rádio e ficava na varanda observando meus únicos vizinhos: um casal de uns 20 e poucos que tinha recém construído um lar ali no meio do nada.
Nunca soube exatamente porque eles decidiram morar no campo. Na idade deles eu gostava mais de agitação. Era bem bonitinha a casa. Feita com cuidado. Viviam só os dois: Elena e Pedro. Ele era alto e tinha traço de quem é filho de índio. Ela era meio desajeitada, caía muito. Os dois eram fracos de feição mas ficavam mais agradáveis quando estavam juntos. Pareciam sempre felizes.
Teve um dia que eu voltei da barragem mais cedo. Eles me viram passando na estrada e ofereceram um café. Era assim que todo mundo se comportava por aquelas bandas. Ninguém tinha muito, mas todos gostavam de compartilhar. Tinha bolo de carimã e torradas. O rádio falava algo sobre a inauguração de uma ponte no Rio de Janeiro.
A casa era ainda mais encantadora de perto. Eles tinham uma varanda de verdade, daquelas com rede. Pedro e eu ficamos conversando por lá enquanto Elena molhava as plantas com um regador improvisado. Eu olhava para ela quando ele se distraía. Não era bonita a moça, mas tinha um jeito interessante. Meio sonsa, meio travessa. Sorria todo o tempo.
Depois desse dia eu comecei a aparecer mais. Fizemos amizade. Eram boa gente. Trabalhavam ali na terra mesmo. Quase não saíam da área da casa. Eu ficava do meu canto vendo eles dançarem de noite. Não dava para ouvir, mas parecia seresta. Ele cansava rápido e ela ficava rodopiando sozinha por mais tempo. Quando eles iam dormir, eu dormia também. E foi assim por um mês.
Início de abril, eu acho. Acordei com o barulho de um carro. Estava com o motor ligado na frente da casa deles. Fui correndo lá ver o que era. A mocinha estava nos braços de Pedro. Quase verde. Tossia sem parar. Chamaram um carro para levá-la a um hospital na cidade. Ele disse ter sido um mal súbito na madrugada.
A casa ficou fechada por três semanas. Todas as noites eu espiava. Nenhum sinal de luz ou de seresta. Acendi velas e rezei pela cura de Elena. Eram boa gente, mesmo. Tinham muito o que viver ainda. E faziam falta os meus vizinhos. Foi uma infelicidade tamanha estar só.
Estranhamente, ela voltou sem Pedro. Levei flores e biscoitos para recebê-la. Aparentava muita saúde. Quando perguntei sobre ele, a moça me lançou um olhar confuso. “Eu deveria saber quem é esse?”, disse. Seguia sorrindo, então levei como piada. Ainda usava a aliança no dedo.
Fiquei aguardando o retorno dele. Tenho que admitir que torcia para que tardasse. Os dias sem ele foram os melhores. Eu podia olhá-la o quanto quisesse. Às vezes sentia culpa, mas ela tratava de me distrair com uma dança ou um olhar manhoso.
Os três meses de trabalho se tornaram cinco. Demorei a me dar conta da situação. Os cafés se tornaram jantares, os jantares se tornaram cervejas. Como que de repente, Elena estava deitada em mim e eu conseguia sentir seus cílios batendo em meu peito. A mocinha tinha tomado conta da minha vida. E nem sinal de Pedro.
Saudável estava, é verdade, mas falhava muito a memória. Primeiro, começou a esquecer coisas pequenas dentro de casa. Deixava comida no fogo, torneira aberta e não regava uma planta sequer. Depois, esqueceu de pentear e banhar. Pulava tantas refeições que as costelas se fizeram visíveis. Elena desaprendia tudo em uma velocidade assustadora. A cada dia de trabalho eu a encontrava com mais uma memória desfeita.
Em pouco tempo sua pele também começou a esquecer. Era como se nada a encostasse. No início, ela se desesperou. Implorava por beijos e carícias e chorava como se quisesse misturar meu corpo com o dela. Triste de ver, mas ainda me remetia àquela criatura indócil que amei meses antes. Durou pouco, porém. Tratou logo de ficar apática.
As escoriações tomaram conta do corpo. Sempre foi desengonçada, mas ali não sentia mais nada. Era frequente encontrá-la com as mãos em panelas quentes. As queimaduras eram tão graves que ardiam em mim. Elena mal piscava. Chegou até a tentar se desfazer de um pedaço de pele queimada com uma lâmina. Completamente alheia.
Evitei chamar um médico porque me faltava coragem. Não sabia o que diriam dela se soubessem que estava com outra pessoa. Não parecia que Pedro ia voltar, mas Elena não sabia dizer o motivo do desaparecimento dele. O nome não significava mais, mas o anel dourado seguia no dedo.
Minha tentativa de manter a situação em segredo acabou quando a mocinha sumiu. Sumiu mesmo, evaporou. Corri os arredores da casa mil vezes e não havia o menor sinal dela. Gritei seu nome, mesmo sabendo que ela provavelmente não se reconheceria mais. Nada. E tinha deixado para trás todos os pertences.
Peguei a moto e fui direto na polícia da cidade. Precisava encontrá-la, mesmo que isso custasse sua reputação. A esse ponto Elena era mais uma filha perdida do que uma amante. Relatei toda a situação ao delegado. Ele coçou a cabeça por alguns segundos e disse que iria procurar uns papéis. Voltou com o rosto um pouco transtornado.
- Odeio ser o corvo portador de más notícias, mas a senhorita Elena Moraes morreu há alguns meses com problema nos pulmões. Creio que o viúvo abandonou a cidade. Estamos falando da mesma pessoa?
Acredite se quiser.

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