21º Departamento de Polícia
Caso Marisa
Testemunha Silas Melo
- Diga seu nome e pode começar.
- Já está gravando? Tudo bem. Sou Silas. Silas Melo. Não sei se serei de muita ajuda.
Marisa era a única pessoa a frequentar as áreas comuns do prédio em que morávamos. A vida corrida que as megalópoles proporcionam a seus habitantes não deixa muito tempo livre para que os moradores possam usufruir da estrutura inclusa nos milhares em aluguel. Eu costumava observá-la escrevendo da varanda do meu apartamento. Quando não estava lá, poderia ser encontrada ouvindo algo inaudível na beira da piscina ou perto dos jardins. Se estivesse em seu apartamento, também seria possível localizá-la. Eu conseguia sentir os incensos e velas aromáticas da janela do andar de cima. Às vezes também escutava seus risos e gritos de frustração. Marisa morava sozinha - até onde eu sabia - mas um visitante despercebido poderia ter a impressão de uma família inteira lá em cima.
Eu nunca tive a oportunidade de conversar com ela. Por vezes desci com o objetivo de encontrá-la no playground e trocar algumas palavras, mas toda vez que chegava ao térreo a área estava vazia. O único rastro de Marisa era o cheiro, o mesmo que exalava de seu apartamento, que impregnava os elevadores. A outra certeza que eu tinha sobre ela é que tinha dois amigos inseparáveis: um gato cinzento e um caderno. Todas as vezes em que eu a via, ela rabiscava algo. O gato estava sempre deitado próximo ao corpo dela. Os três pareciam um ser só.
Fisicamente não tenho muitas descrições. A distância não permitia qualquer riqueza de detalhes. Eu diria que tinha por volta dos 28 anos. Talvez mais de 30, é difícil saber. Cabelos escuros, quase sempre soltos e para a minha infelicidade escondiam boa parte do rosto. Usava roupas discretas o suficiente para que todas parecessem a mesma. Não aparentava se importar com qualquer coisa que não fosse o gato e o caderno. Estava sempre imersa em algo que para mim era, e sempre seria, inalcançável.
Certo. Garota peculiar e misteriosa. Roteiro de filme dramático que sempre termina com alguma lição de moral estúpida sobre liberdade. Não é que eu quisesse me intrometer na história, mas confesso que era uma distração interessante imaginar o que se passava pela mente dela. Adivinhar o que estava dito naquele caderno. Saber seu nome. Eu transformei aquilo em um jogo onde eu provavelmente nunca teria respostas. Não é como se eu fosse obcecado por ela. Era apenas uma respiração do tédio que eu vivia - uma vida mais interessante que a minha de ser vivida.
Contando as datas do ocorrido, creio que as coisas começaram a desandar no dia 18 de agosto. Cheguei do trabalho, peguei uma cerveja e fui abrir a cortina para procurá-la. Marisa não estava em seu lugar de costume, e o gato também não podia ser visto. O caderno estava no chão. A imagem me causou uma certa estranheza. Desci correndo, mas já imaginava que quando chegasse ao térreo o caderno não estaria mais lá. Porém, ele estava. Foi assim que descobri seu nome. Na contracapa havia uma dedicatória que no final escrevia
"Espero que não rasgue este como rasgou os outros, Marisa. O mundo ainda não acabou. Com amor, D."
A princípio eu abri o caderno e fiquei tonto. Era uma coleção de desenhos, enigmas, poemas e trechos de diário, todos amarrados nos mesmos traços finos e caligrafia confusa. Era perceptível que as mãos de Marisa tremiam na maior parte do tempo. As páginas eram um retrato da mente atormentada da moça. Às vezes parecia que ela estava fugindo de algo. Às vezes esse algo parecia ser um alguém. Talvez o tal de D que a presenteou com o caderno. Eram tantas palavras, escritas em todas as direções, que eu levaria meses para conseguir decifrar o que estava acontecendo.
Subi para o apartamento dela e apertei a campainha algumas vezes. Sem resposta. Desci para a minha casa e tentei o interfone. O mesmo silêncio. Liguei para a portaria e perguntei se ela havia saído do prédio. Ele não soube informar. Falei do caderno esquecido na área de lazer. Ele não deu importância e disse que me retornaria caso Marisa aparecesse na portaria ou em alguma das câmeras. Não havia muito mais a meu alcance.
Deitei e resolvi dar mais uma olhada no caderno. Folheei devagar. Minha ansiedade rapidamente deu sinais. Tive medo. Por mim, por ela. Algumas dores eram as minhas próprias - o que é interessante porque tudo isso começou justamente pela impressão de que aquela mulher vivia em outro universo. O outro universo que era vizinho ao meu. Anotei algumas frases. Me permite?
- Continue o depoimento. Já estamos em posse do caderno.
- Certo, desculpe. Marisa e o gato desapareceram por dois dias. Durante esse tempo, quando estava em casa, eu me posicionava na varanda e ficava lendo o caderno e procurando com a beira do olhar a figura da moça para que eu pudesse sinalizá-la do paradeiro do caderno. Minha esperança seria de que ela apareceria onde o deixou para procurá-lo. Talvez eu tenha superestimado o objeto. Talvez D estivesse certo e ela quisesse rasgá-lo como rasgou os tais outros. Eu realmente não sei. Parecia uma parte exposta demais de alguém para ser abandonada no relento daquela forma.
No dia 20 de agosto eu e o caderno dormimos na varanda. Acordei por volta das duas da manhã tossindo fumaça. Alguns vizinhos gritavam. Saí do apartamento desnorteado e subi as escadas apenas para ver o apartamento de Marisa arder em chamas. As outras pessoas que moravam no andar já haviam descido. Gritei seu nome o mais próximo que pude da porta. Tentei sem sucesso conter o fogo com o extintor do corredor. Quando já me sentia tonto, os bombeiros chegaram e me encaminharam para fora. Fiquei nas escadas do andar aguardando notícias sobre a moça. Não demoraram a chegar: não haviam corpos no apartamento, nem de Marisa, nem do gato.
FIM DO DEPOIMENTO
Depois de uma tarde de espera na delegacia, cheguei em casa com a cabeça pesada. Eu me senti inútil. Deitei e fiquei olhando para o teto. Já haviam se passado 10 dias desde o desaparecimento de Marisa e até então nenhum sinal da moça. A polícia não demonstrava muito interesse em resolver o caso. O caderno parece ter sido irrelevante. Os vizinhos tinham duas opiniões sobre a situação: uma artista querendo fugir da realidade ou uma mulher com transtornos psiquiátricos. Eu sabia que não era nada disso.
Cochilei no sofá. Acordei com um som esquisito no meu apartamento. Era um miado. Olhei assustado para a janela e me deparei com o gato cinzento me encarando. Junto a ele estava um caderno. Páginas em branco. Só havia uma dedicatória na contracapa.
"Me pergunto quando estará satisfeito em se alimentar da minha alma, Silas. Cuide dele, M."

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