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Morgana.


Ode aos ponteiros.

Foge de minha compreensão o quanto a vida de alguém pode mudar. Não há perspectiva, planejamento, escolhas e restrições que sejam imunes à delicadeza da imprevisibilidade. Tinha o hábito de fazer listas. Uma dizia sobre cortes de cabelo que gostaria de ter em algum momento, outra sobre ações que pretendia fazer antes de morrer. Pular de paraquedas, nadar com golfinhos, fotografar animais silvestres, visitar o México, esquiar na neve. Morri diversas vezes e ainda não completei um item sequer. Poderia discorrer porém sobre uma imensidão de cenas que jurei nunca viver e vivi. Com direito a andar numa viatura policial e me tornar um projeto de quem minhas versões mais jovens lutavam para não ser. 

São duas horas da manhã, o que uma eu de ontem chamaria de meu horário. Tentativa não tão falha de ressignificar o que outrora descrevi como madrugadas são muito solitárias. Aparentemente um dos poucos fatos imutáveis sobre o sujeito eu é justamente estar ativa enquanto os outros dormem, provavelmente escrevendo uma história despretensiosa que gosta de se dizer obra prima ou tocando alguma canção lembrada por ninguém. A diferença é que no hoje o silêncio que costumava sufocar não existe mais: adotei um cachorro. Ele chora todas as noites, sem preguiça. Dura alguns incansáveis minutos até que ele mesmo não aguente se ouvir. Imagino que busque um conforto que eu indubitavelmente seria incapaz de fornecer - se soubesse teria feito para mim própria. 

Cheguei aqui. O como é uma grande interrogação. A saída, uma maior ainda. Já quis e já amaldiçoei tudo o que tenho. Gosto de pensar no passado porque me dá a falsa sensação de evolução. É gostosa a arrogância de observar as decisões de cima e ter a certeza de que tudo mudaria. Jamais mudaria. Mil vezes tivesse a chance, mil vezes pecaria. É a essência de qualquer viajante de lapsos. Uma de minhas gravações favoritas diz a passagem do tempo e todos os seus crimes estão me deixando triste novamente. Palavras mais cruéis não poderiam sair de meus dedos. Vive-se como se extinguindo e se deprime na mudez. Arrepende-se de se arrepender. Finge. Não é mais etérea que covarde. Lástima - nada que uma caricatura grosseira não sane.

Às seis, sorri. Às oito, boceja mas sorri também. Às doze, abduz-se por um badalar, mas é resgatada com um grito. Ficaria melhor por lá. Às dezesseis, o corpo cumprimenta amigavelmente. O resto não está. Disparou-se em corrida. Vaga fingindo não conhecer o mesmo caminho que persegue desde que se entende. Reunirão-se todos aqui novamente às duas. Agora. Para amargor idêntico ao ontem e ao que veio antes do ontem. Para registrar em papel, teclas, cordas, telas e espelhos tudo o que deveria ter sido e não mais será. 

Condenaram-na ao entorpecimento: trafega sem sequer saber quando inicia o alvorecer e quando termina.


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