Pular para o conteúdo principal

Minerva.


Vi no jornal da manhã que o mundo acabaria hoje. Não lembro ao certo se por invasão alienígena ou alguma data marcada por profecias de povos antigos. Foi logo depois de uma reportagem sobre fazendas sustentáveis, e minha mente ficou apegada aos vídeos das vaquinhas correndo felizes. Sem saber que seriam abatidas em seguida, então felizes. O comércio de carne bovina nunca cansa de me surpreender. De qualquer forma, não importa. O jornal disse que o mundo acabaria hoje, 28 de maio, e agora preciso me organizar. 

Lembro vividamente da primeira vez que ouvi um anúncio de fim de mundo. Passei pelo menos uma semana sem conseguir dormir à noite, imaginando que meu sono seria perturbado por explosões, chamas, alagamentos ou tiros. Criei também uma regra de não descer para a varanda de casa depois das 19h, porque os alienígenas provavelmente pousariam ali e eu seria o primeiro alvo. O medo - associado às alucinações - chegou a proporcionar uma aparição de OVNI no quintal da minha casa. Com direito à luzes, fumaça e sons que interpretei como linguagem extraterreste. Anos depois ouvi os mesmos sons e percebi que eram apenas o barulho dos botões do Genius quando apertados rapidamente. 

Ainda apenas uma criança. Apegada ao senso de autopreservação, esperançosa por dias melhores, triste pela possível morte da coleção de bonecas Polly. Sem rugas, sem fios grisalhos, sem grandes cicatrizes. O fim do mundo naquele momento soava como uma grande injustiça sem culpados. O espelho instigava possiblidades a alguém que ainda não era - mas queria. Queria ser astronauta. Queria ser médica. Queria ser cientista. Coitada. Se soubesse onde estamos agora teria abraçado a ideia de fim de mundo como uma dádiva. 

Depois desta data, ouvi inúmeros anúncios de fim de mundo. Meteoros se aproximando, calotas polares derretendo, crise alimentar, epidemias. A cada anúncio, criei formas estúpidas de sobrevivência. Quando as ameaças eram meteoros, trancava portas, janelas e deitava sob a cama. Por vezes, alucinava estar em um bunker indestrutível. O recorde foi de 37 horas seguidas dentro do bunker. Para o derretimento das geleiras, a solução parecia fácil: bastava subir até o último andar do prédio mais alto da região. Entrei em aulas de natação para este fim. Até hoje não sei nadar. Se fosse crise alimentar, poderia viver em um canto do sítio da minha família e plantar o necessário. Epidemia era a única possibilidade sem solução prática aparente.

Na sétima série, um professor de biologia apresentou em classe o filme Epidemia (1995). Elenco de peso, tenho que admitir. Acho que a única obra cinematográfica que me causou nível de angústia similar foi Aniquilação (2018) - que não por acaso também tem um enredo onde o fim do mundo é inevitável. Ainda que eu conseguisse mensurar o tormento causado em minha mente por estes filmes, eu não o faria. Depois de estabelecer a impossibilidade de construir diálogos mentais eficientes, o esforço em iniciá-los perdeu o sentido.

Explico: não há um só mundo. O conceito de mundo por si só é bastante relativo. O consenso geral é considerar mundo o planeta habitável apelidado Terra. Este mundo certamente ainda tem mais anos de sobrevivência do que eu conseguiria contar. As religiões falam sobre outros mundos. Deuses, deusas, espíritos, orixás, céu, inferno, plano superior, submundo, purgatório. São inúmeras roupagens para descrever os mesmos fenômenos. E todos estes símbolos constroem a narrativa de outros mundos, amigáveis ou não, onde pode-se recorrer em caso de angústia. 

A ciência também fala de outros mundos. Planetas remotos com chance de abrigar forma de vida baseada em carbono. Condições atmosféricas possivelmente suportáveis para humanos. Água. Confesso que as conversas sobre habitar Marte ainda me soam como uma grande conspiração eugenista. Certa vez ouvi de uma vizinha que ela pagaria para morar em Marte e seria mais feliz lá. Como se o dinheiro de pensionista do INSS fosse suficiente para garantir a uma mulher idosa, negra e semianalfabeta um ticket para a felicidade marciana. Em hipótese de que fosse possível a colonização de Marte, ela certamente nem existiria para o sistema, assim como não existe agora - e eu também não. Ao menos, ela tem esperança. Já eu, consciente demais de minha própria pequenez, tenho apenas lamentos. 

Finalmente chegamos aos tais diálogos mentais. Meus mundos favoritos. Existe um fascínio arisco na tangência dos mundos mentais. Jamais unidos, jamais coexistindo. Coincidem apenas nas bordas. Em cada mundo se fala um idioma particular, com seu alfabeto próprio. Os diálogos são feitos através de convenções. Para além das convenções sociais, que os mundos-mente se reprimem em consentimento, estão as convenções particulares relativas a cada diálogo - a cada tangente. A dinâmica inteira é guiada por tratados não-escritos. Estes mundos, porém, se acabam o tempo inteiro. E pela impossibilidade de se proteger em um bunker ou comprar uma passagem espacial para outro mundo, eles ressurgem no mesmo espaço. Outro idioma, outro alfabeto. Mesmo espaço. A tradução fica a cargo dos dialogadores.

28 de maio: que dia lindo para um fim do mundo! Choveu, mas só o suficiente para deixar a sensação térmica mais amena. Fiz antepasto e torradas com pão velho. Abri uma garrava de moscatel que alguém me deu de aniversário. Quem quer que tenha sido, obrigada. Coloquei meu melhor vestido vermelho e minhas botas favoritas. Iniciei o vinil de hits do Elvis Presley de forma que It's Now or Never toque exatamente à meia noite. Algum mundo acaba hoje. Brindemos. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Adam.

foram exatos dois anos cinco meses e vinte e dois longos dias até que pudesse retornar para casa em todos os segundos recordei-me do som de sua voz dos dizeres poéticos do sotaque etílico dos dentes desalinhados das graças que eram intrínsecas a ela meus lábios lembravam do gosto meus olhos ansiavam pelos cabelos escuros meus dedos sabiam o mapa perfeito de sua pele tudo sobre ela era meu e eu fui inteiro dela foram exatos dois anos cinco meses e vinte e dois longos dias até que pudesse retornar para casa sentado na calçada pensei no que dizer em como explicar justificar inventar uma forma de dizê-la que nunca quis machucá-la que ela não tinha culpa de minha iniquidade que soçobrei ao desespero que não houve intenção de desgraçá-la  e mesmo consciente de que nenhum roteiro me salvaria toquei a campainha com dedos trêmulos (foram exatos dois anos) aguardei o que pareceu uma eternidade e nenhum olhar conhecido me atendeu (cinco meses) eis que com um sopro de coragem bato à porta esmu...

Limbo.

Ouroboros.