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Luce.

Amava música como ninguém. Recitava Baudelaire como se Flores do Mal tivesse sido escrito por ela própria. Luce exalava poesia. Eu amava poesia.
Nos conhecemos por acaso - há quem chame de destino, mas nunca gostei de acreditar que as coisas fossem determinadas por uma força maior. Eram 4:30h da manhã e eu estava sozinho em um mirante na praia do Rio Vermelho esperando o amanhecer. Costumava ir a esse mirante para pensar quando a correria da vida afogava minha mente. Depois do terceiro cigarro, minha vista foi tomada por uma figura distante. Havia uma moça com um suéter avermelhado andando descalça na areia. Ela olhava o mar com intensidade, como se quisesse absorvê-lo. O vento fazia seu cabelo castanho dançar elegantemente. Tudo sobre ela era gracioso. Encarei-a por instantes, mas ela parecia estar conectada demais à ventania e às ondas para notar minha existência. 
Na madrugada seguinte, retornei ao mirante na esperança de revê-la. A peculiaridade da moça do suéter vermelho roubou todos os meus pensamentos, de forma que minha mente maquinou curiosa sobre ela o dia inteiro. Queria saber seu nome. Queria olhar seu rosto de perto e apreciar os detalhes. Não sabia se ela apareceria, mas a esperança do reencontro me manteve firme sob o frio e a chuva fina que arrepiavam naquele alvorecer. 
Depois de longos minutos, uma sombra apontou na areia. Era ela. Descalça, trajava uma camiseta de renda fina e uma calça jeans esgaçada. O suéter vermelho estava amarrado na cintura. O cabelo, molhado, acompanhava os passos da moça pela praia deserta. Não parecia se incomodar com o frio ou com a chuva. Ao contrário, apreciava cada gota de água que tocava sua pele. Era possível sentir a exuberância de sua presença à vários metros de distância.
Desci o mirante devagar e me aproximei cautelosamente da mulher. Não sabia o que diria a ela. Um "olá" para começar? Uma explicação de porque a observava? Meus pensamentos inseguros foram interrompidos por uma melodia quente.
-Você sabia que é assustador perseguir as pessoas? -disse a moça do suéter vermelho.
Sua voz era uma orquestra inteira. Era calma. Aquele timbre era puro êxtase. Nunca havia conhecido alguém tão vivo quanto ela. 
Pedi desculpas pela observação descuidada e expliquei o que acontecera. Contei a ela que frequentava o mirante daquela praia quando precisava ficar sozinho e então ela aparecera e roubara toda a minha atenção. Escutou minha fala atentamente com uma expressão indecifrável. Quando terminei, fui presenteado com um sorriso. No momento em que vi aquele sorriso, o encantamento foi fatal. Aquela moça era diferente. Era peculiar. Ela destoava. Seus olhos castanhos refletiam as primeiras luzes do dia e eram os mais bonitos que eu já vira. Quem acha que olhos verdes ou azuis chamam atenção com certeza nunca viu os olhos de Luce.
Conversamos por uma hora, mas pareceram segundos. Cada instante ao lado dela era acompanhado de tanto enleio que parecia comprimir o tempo. Falamos sobre arte e natureza - seus assuntos favoritos. Descobri que sua bebida predileta era vinho e que ela evitava usar sapatos. Sapatos aprisionam, dizia. Como você vai sentir a terra sob seus pés se estiver calçado? Tudo sobre Luce era desconforme. Ela era muito ela.
Em pouco tempo Luce se tornou meu vício. Passei a ir ao mirante todos os dias para encontrá-la. Às vezes tagarelávamos por horas; às vezes apenas ficávamos mudos na areia e observávamos as constelações. Luce me seduzia simplesmente por existir. A existência dela era quase uma transgressão. Como era possível alguém ser tão pulsante? Tão real? Tão vivo? Eu amava Luce como nunca amara a mim mesmo. 
Numa madrugada, sem aviso, o arrebatamento teve fim. Fui ao mirante ansioso para encontrá-la como tinha feito todos os dias por meses a fio, mas esse alvorecer foi diferente. A praia estava parada. Não haviam ondas, não havia vento. Não consegui avistar Luce do mirante. Desci para a areia e comecei a andar a sua procura. Algo estava errado. Não havia o calor da sua presença. Não conseguia sentir sua exuberância. Andei desesperado por quilômetros. Gritava seu nome como se dependesse daquilo para sobreviver - e quase dependia.
Amanheceu. Sabia que ela não apareceria depois que o sol nascesse, então voltei para casa. Estava transtornado. Abandonado. Traído. A abstinência de Luce doía. Não sabia seu telefone, não sabia onde morava. Não sabia sequer seu sobrenome. Como a encontraria?
Com um solavanco, o telefone tocou. Atendo e ouço sua voz etílica. 

"Não me procure mais."

Foi tudo o que ela disse. Eu tinha mil perguntas para fazer, mas o número era privado e não consegui retornar a ligação. Nunca mais vi a moça do suéter vermelho. 
Foi assim, tão ao acaso como nos conhecemos, que nos despedimos. 

Hoje, três anos depois, continuo indo ao mirante cotidianamente, na esperança de que um dia minhas madrugadas voltem a ser impregnadas de vida. Impregnadas de Luce.

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