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Danse Macabre - Final


A violinista.
França, 1823.
Natalie acordou sem lembrar de como havia dormido. A última memória que tinha era o violino de vidro.
Despertou ao som de algumas faces pálidas questionando o motivo de sua saída na tempestade. Marlon estava adormecido em uma cadeira de balanço no fim do corredor. Parecia ter passado a noite em claro.
Pierre apareceu alguns minutos depois com a notícia de que um doutor viria examinar Natalie. A garota não entendeu. Sentia-se bem, era saudável, não precisava de um médico. A única coisa que Natalie precisava era encontrar o violinista mais uma vez. Sua existência agora figurava-se incompleta sem a presença daquele ser peculiar.
Não tardou até que o médico chegasse.
Houveram inúmeras perguntas sobre a fuga de Natalie da noite anterior. No meio de muitas suposições levantadas, a história do encontro com o violinista não foi em momento algum avaliada como verdade. Pierre acreditava que a moça tivera um episódio de histeria. As criadas preocupavam-se com um possível distúrbio nos pulmões causado pela friagem. Marlon presumia outros intentos: julgava estar sendo traído e chegou a sussurrar a palavra vadia algumas vezes.
Natalie não se importava. Todas aquelas pessoas eram medíocres se comparadas ao violinista. Todos eram irrelevantes.
Depois de muitas análises, o doutor constatou que Natalie padecia de uma enfermidade desconhecida. A única informação que se tinha é que a doença não estava nos pulmões, e sim, nos ouvidos.
Quando as criadas e o médico saíram do quarto, Marlon deu a notícia de que Pierre havia abençoado o casamento dos dois. Ele não parecia mais tão animado. Natalie foi indiferente. O casamento não era mais significante. Os anos ansiosos de espera pela benção do pai eram inexpressivos se comparados à inquietação que tomara posse da moça. Natalie precisava ouvir aquela melodia melancólica novamente ou morreria do mais profundo desgosto.
O resto do dia foi silencioso.
Todas as flores pareciam ter se despigmentado à tons de cinza. As vozes da casa eram só barulhos. Nada era capaz de captar a atenção de Natalie. Cada coisa que fosse pintava-se morta. A própria Natalie pintava-se morta.
Um vento gélido trouxe a noite de volta.
Natalie não quis descer para jantar e se aquecer na lareira com Marlon e os outros. Não sentia fome. Também não sentia frio. Não tinha qualquer sensação que não angústia e uma infeliz saudade. Fechou os olhos e forçou-se dormir. Tinha esperanças de acordar no dia seguinte sem aquele vazio doente em seu peito. Não haviam forças suficientes para suportá-lo.
Dormiu por alguns quietos minutos, até que o arrebatamento da noite anterior tomou força novamente. A inconfundível melodia do violino de vidro convocava sua alma em gritos soturnos. Natalie precisava seguir as notas. Ela simplesmente precisava.
A moça desceu pela janela de seu quarto silenciosamente e correu com toda a força que lhe restava. Ouvir aquele som de novo parecia um sonho. Os adágios perfeitamente executados deixavam seu corpo em completo êxtase. As notas eram tão intensas que pareciam tocá-la.
Natalie perseguiu o violinista até a beira da Pointe Du Hoc. De cima do precipício, avistava o violino de vidro brilhando à luz do luar. O violinista estava do outro lado. Não havia outro lado.
A garota não pensou duas vezes.
Pulou da borda para encontrar o pedaço de sua alma que lhe faltava. A ânsia era tanta que sabia que voaria. Dizem que a fé incondicional é capaz de mover montanhas. Dizem. Dessa vez, a gravidade venceu.
O corpo de Natalie caiu no abismo e foi levado pelo mar. O violinista de vidro tocou sua última melodia taciturna enquanto o cadáver da moça perdia a cor na água salgada.
-"Danse Macabre", Camille Saint-Saëns.


E eis que Natalie finalmente se tornou o violinista.
E seu nome nunca mais foi ouvido.

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