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Mostrando postagens de 2020

Elena.

74 foi um dos anos mais curiosos da minha vida, se é que posso dizer assim. O caso dessa moça aconteceu quando fui contratado para remendar a barragem do rio de cima. O trabalho deveria durar três meses. O dinheiro não era muito, mas incluía um casebre razoavelmente perto da obra e uma moto usada. Bom negócio. A casa era apenas habitável. Moradia de passagem mesmo, zero conforto. Uns móveis poucos e paredes de concreto. O telhado precisava de conserto, molhava quando chovia. Na frente tinha um canto que eu chamava de varanda. Ventava bastante. De dia eu trabalhava e no anoitecer comia qualquer coisa numa venda e ia para casa. Ligava o rádio e ficava na varanda observando meus únicos vizinhos: um casal de uns 20 e poucos que tinha recém construído um lar ali no meio do nada. Nunca soube exatamente porque eles decidiram morar no campo. Na idade deles eu gostava mais de agitação. Era bem bonitinha a casa. Feita com cuidado. Viviam só os dois: Elena e Pedro. Ele era alto e tinha traço de q...

Ceci.

Nós nos conhecemos em dezembro de 91. Minha banda tinha acabado de lançar o primeiro álbum. Tínhamos shows agendados em quase todas as noites daquele mês. Milagrosamente não iríamos só abrir para outras bandas mais famosas e experientes - havia quem nos conhecesse e comprasse os ingressos na intenção de nos ver. Era a realização do sonho mais longínquo de todo garoto que passou a adolescência com uma guitarra usada tentando imitar os Rolling Stones . Ceci tinha acabado de chegar na cidade. Ainda estava organizando o apartamento de dois cômodos que seria sua casa pelos meses seguintes. Tinha poucas certezas. A maior delas era a liberdade. Não conhecia nada e nem ninguém ali. Não tinha um passado, poderia inventar a vida que quisesse. Estava feliz em ser anônima. Eu também não tinha muitas certezas. Quando a vi, ela se tornou uma. Estava tomando café em um bar/restaurante que ficava a duas quadras da minha casa. Ela fazia um esforço visível em tornar-se desinteressante, e quase conseguia...

Alice.

- Aqui nunca chove. Algo na chuva me deixava com saudade de casa, então parou de chover. Também nunca é dia. Costumava temer o escuro, mas descobri que não sei escrever em claro. Então parou de amanhecer. É bonito, mesmo assim. Aqui a lua clareia mais que o sol. É espaçoso, eu diria. Um mundo confortável para uma claustrofóbica. Antes haviam paredes, mas faziam uns barulhos estranhos com o vento. Aí derrubei. Eram desnecessárias, no fim das contas. Não tenho vizinhos e não chove - para que mais eu precisaria de paredes? Tinha também a questão do tempo. Antes a minha vista cansava quando eu escrevia demais. A coluna gritava com a má postura. Não conseguia andar dez metros sem ficar completamente exausta. O refluxo na mitral me envelheceu meio século em poucos anos. Poderia ter me adaptado lá, mas eu queria correr na praia. Aí decidi não voltar mais. Pensei que fosse me sentir mais solitária com a mudança. Às vezes sinto vontade de dançar uma valsa ou coisa assim, mas nada que meu espíri...

Íris.

As primeiras coisas que se notavam eram as mãos. Unhas mal pintadas e anéis prateados se contorcendo rapidamente para preparar os drinques de uma plateia sedenta. Sempre com o olhar baixo e respostas prontas para engraçadinhos. A vi de relance muitas vezes. Em todas tinha feições de quem não queria conversas. Íris era uma espécie de faz-tudo. Parece ter sido contratada como bartender, mas não era raro encontrá-la no caixa, nos controles de áudio ou impacientemente ajudando alguém que tinha se excedido na vodka. Eu não bebo - bebia por ela. O álcool me concedia o prazer de alguns poucos segundos de diálogo impessoal enquanto ela me ajudava a escolher meu pedido. Ela trabalhava no bar todas as noites. Nunca faltava. Disseram-me que estudava música e precisava do dinheiro para investir em sua carreira. Imaginei que quisesse ser cantora. Vivia com fones de ouvido no pescoço e se escondia neles nos dias menos movimentados. Demorou um mês para que eu conseguisse fazê-la me olhar nos olhos. P...

Rubi.

Cuidadosa em todos os detalhes. Metódica e pontual. Chegava em casa perto das 17h e acendia um incenso. Tomava banho nos fins de tarde com as luzes apagadas. Se já tivesse anoitecido, acendia velas. Vivia acompanhada de uma caixinha de som branca. Tenho a impressão de que escutava as mesmas músicas. Gostava de dançar sozinha. Deslizava pelos poucos metros do pequeno quarto-sala como se ali houvesse o espaço do mundo inteiro. Não havia. Às vezes se chocava com um móvel ou uma planta. Ria de si mesma e continuava. Era desajeitada nos passos e tinha consciência disso.  Não costumava receber visitas. Passava horas no telefone conversando com alguém que estava longe. Frequentemente desligava o celular, deitava no chão e chorava. Se ligassem novamente, se recompunha em dois tempos. Sorriso no rosto. Sorriso de quem não queria sorrir. Não sei dizer se era saudade. Doía - até de ver doía.  Tinha sempre os lábios vermelhos. Encarava o espelho na parede da sala por horas. Fal...

Miriam.

23:48h. Silêncio total. Girei as chaves com cuidado e entrei em casa. Nenhuma luz acesa. Se minhas preces fossem ouvidas, ela estaria dormindo. Seria mais fácil me justificar pela manhã. Só tive o tempo de abaixar para tirar os sapatos. Ainda sem levantar o rosto, escutei sua respiração. Havia uma silhueta elegante na porta da varanda. Cabelos presos, olhar vazio. O vestido branco pairava calmamente com o vento. Miriam sempre teve uma presença indesvendável que parecia fazê-la levitar. - Reunião de última hora no trabalho. Não tive como telefonar. Foi uma urgência. - anunciei, já imaginando os questionamentos que viriam.  Sem resposta. Não se deu o trabalho de mover um músculo. Era possível sentir sua raiva do outro lado do cômodo. Miriam costumava ser explosiva. Dizia o que pensava até que eu estivesse de joelhos em seus pés. Sempre com requinte. Dessa vez, havia algo diferente. Continuei congelado na porta como quem foi pego em flagrante.  - Você pode perguntar ...

Gitano.

Rostos e olhos e corpos. Não dizem - exalam dizeres. Somam-se gestos e poesias e cantigas. Omito: sou colecionador de bem-quereres.  Este é meu universo. Onde os ventos são fortes e a chuva nunca tarda a cair. Onde sempre há uma xícara de café por esperar. Divino e medíocre. Certo. E então, engano. Cruel engano este que amaldiçoei a mim mesmo. Sorrateiramente farsa, depois dúvida, mas sempre farsa. Solitude, também. Toda farsa tem essência em solitude.  No fim, pouco sobra. Desfazem-se os rostos e olhos e corpos. Subtraem-se os gestos e poesias e cantigas. Fica o café. Divino e medíocre. Etéreo.  Tragam-me livros: não há mais mãos para ler.

Marina.

Eram 22h de uma sexta-feira qualquer e meus olhos preguiçosos buscavam da janela do ônibus a esquina de casa. Eu mal reagia aos solavancos do caminho. Estava desenhada em mim a apatia de quem beirava à exaustão.  Quatro paradas depois, desci. Usei todo o resto de energia que eu nem sabia que restava em meu corpo para correr pela rua deserta. Entrei em meu apartamento como quem abria um baú de tesouro. Não pensei duas vezes antes de cair no sofá e respirar profundamente. Não queria pensar. Fiquei deitada por talvez quinze minutos. Meu celular vibrava sem parar do outro lado da sala. Mensagens de voz de um número desconhecido. “Estou com seus textos. Você esqueceu uma pasta no banco do ônibus. Achei seu número em um dos papéis, perdão por entrar em contato tão tarde”. Para ser sincera, era irrelevante. Todos os textos eram cópias de contos que já tinham sido recusados por pelo menos metade das editoras da cidade. A pasta era nada mais que uma lembrança física de minha me...

Ela.

(eu queria os seus olhos) a avistei ontem à noite enquanto dormia a brisa do vento apalpou meu rosto e sua voz rouca disse: não pare antes de ir, prometeu-me que nunca aquietaria queria ser metade da aventureira que ela é queria abraçar todas as pessoas do mundo e me sentir parte do universo como ela com ela ver bondade como ela vê ter vontade como ela tem ser simples só ser maior do que qualquer um e menor do que todos (peculiar) seria perverso pedí-la que fique seus pés descalços desconhecem fadiga flui - e não se esvaziará como noite, existe completa.